quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Diabo na Cruz VIROU!

Arre! DIABO NA CRUZ virou tudo. E não é só aquela minhota da capa que de repente se vê num tempo para o qual não tinha bilhete de entrada: é Jorge Cruz a escapar à sua própria biografia e – transformando pó em pátina – a desenterrar uma realidade prematuramente hibernante. Que o faça jubilando memórias e inebriando cúmplices de tendências tão diversas é um pequeno acontecimento. Mas que tenha colocado a voz de Vitorino a abrir o disco – quase como quem vem anunciar um programa de festividades – implica já façanha de outra importância: porque não é fácil arregaçar mangas, enfiar braços pela garganta de uma tradição adentro, de lá arrancar um pedaço de entranhas e esperar que com isso lhe bata mais forte o coração.

Ainda para mais combinando a minúcia de um cirurgião com a força de um ferreiro. Ou melhor, como um mecânico do folclore DIABO NA CRUZ trabalha-lhe o motor e a carroçaria, rasura-lhe contornos, invade-o até lhe descobrir segredos, troca-lhe peças e a partir daí estabelece um novo conjunto de princípios com os quais, para o que der e vier, terá de se haver. E, Roberto Leal que nos perdoe, aí intervém de forma absolutamente singular. Porque percebe que esse corpo há muito inerte – que não quer a morrer-lhe nas mãos – só volta a si com o desfibrilador a puxar pelos joules, a chapa bem quente, a energia em movimento, um épico elenco (atenção ao interior do livreto) e… VIROU!

DIABO NA CRUZ nasce em 2008. Uma nova geração de músicos e escritores de canções, de ideários tangentes, tinha-se aproximado de Jorge Cruz – e vice-versa. João Coração pediu-lhe orientação para um primeiro disco, Tiago Guillul e Samuel Úria convidaram-no para espectáculos dos Ninivitas e Manuel Fúria levou-o a produzir Os Golpes. Relembra ainda concertos em grupo no Arcaz Velho, em Alfama, onde encontrou Bernardo Barata (Feromona), recorda a presença de João Pinheiro (TV Rural) na banda de Coração e reconhece uma génese em trio para novas soluções ao nível da sua produção: “a ideia era deixar tudo sair rápido, naquela ‘corrente de consciência’ beat que serviu de inspiração ao Dylan mais torrencial. Mas descobri no processo que o que me habitava eram os vinis do meu pai… O "Pano Cru" e o "Salão de Festas" do Sérgio Godinho, o "Romances" e "Os Malteses" do Vitorino, o "Pois Canté" do GAC, o "Histórias de Viajeiros" e o "Por Este Rio Acima" do Fausto, o "Coisas do Arco da Velha" da Banda do Casaco, o "Com As Minhas Tamanquinhas" e o "Cantigas do Maio" do Zeca Afonso”.

A partir daí embarcou-se numa aventura de regras desconhecidas. Até que, no Outono de 2008, o DIABO NA CRUZ se encontrou. A chegada de B Fachada permitiu incorporar mais harmonizações vocais, reconduzindo parte da empreitada até à música de recolha, à tradição oral. João Gil (V. Economics) veio satisfazer uma obsessão pessoal de Cruz com o "This Year's Model", de Elvis Costello. Os adufes foram-se envolvendo com guitarras eléctricas, o punk-funk sincronizado com um teclado meio-Steve Nieve meio-Pop Five Music Inc., os ritmos alimentados a barras energéticas, enfim, nada de muito convencional mas perfeitamente de acordo com o percurso de Cruz. Desenvolvido nas margens da indústria, conta mais de 15 anos com 6 discos editados, todos eles algo diferentes, algo interessantes, algo desacertados. Haverá muito boa gente a defini-lo como alguém que esteve no lugar certo à hora errada. As leis do anacronismo são duras mas parecem finalmente sorrir-lhe.

Em Cruz confundem-se os anos com os Superego – grunge cantado em português, estímulos retirados ao Mangue Beat e manifestos anti-portuguesófobos – ou com um O Pequeno Aquiles intimista e lo-fi. E troca-se a pele do cantor de rua boémio que percorreu as ramblas de Barcelona – enteado de Jorge Palma – com a do cantor romântico com músicas de “Poeira” (NorteSul/SomLivre, 2007) nas novelas. Agora, naturalmente, avessa-se muito mais: biografia e História. Resumi-lo-á assim: “O disco tem na presença do Vitorino um forte simbolismo; ele serve de ponte entre duas margens que viveram separadas durante mais de trinta anos: a da Música Moderna Portuguesa, que acabamos em parte por representar, e a da Música Popular Portuguesa, que tem sido muito mal engavetada na época revolucionária. Há muito que a nossa música carece de um Tropicalismo que venha emancipar-nos e unir-nos, que junte o génio de José Afonso ao de António Variações, sem fronteiras. O DIABO NA CRUZ escolhe a História da Música Popular Brasileira como exemplo e a música anglo-saxónica como influência incontornável. Acredito que existam muitas outras maneiras de convidar a Música Moderna Portuguesa a encontrar-se com a sua raiz. Pois que venham elas!”. Esta é a de DIABO NA CRUZ.