Havia uma interrogação recorrente sempre que se pensava – e graças a deus pensava-se muito – em Lula Pena. Por onde andava e porque nos víamos sucessivamente privados de ouvir novos registos da sua música, dessa maneira que tem de cantar que maravilha todos os que consigo contactam. As razões são tantas quanto as histórias, e tão puras e honestas quanto a própria música que protegem.
Nascida e criada na bonita Praça das Flores, cresceu longe da televisão, com o rádio do pai uma presença constante. Habituou-se, diz, ao “som sem a imagem social”. Recorda-se de aos 10 anos ter na escola uma professora que levava os alunos para a ponta do recreio, pedindo-lhes aí para fecharem os olhos e identificarem os sons que escutavam, ao perto e ao longe. Em casa, o seu irmão tocava guitarra e foi com ele, cantando juntos, que descobriu o milagre singelo da polifonia, enquanto desbravava uma discografia com Simon & Garfunkel, Bob Dylan, folk norte-americana, Beatles ou jazz.
Será essa uma parte significativa da sua educação, ainda que até hoje insista em não “procurar nada” mas sim em “ir encontrando”. Não odiava nem idolatrava ninguém nem coisa alguma, e se um dia, em miúda, pegava na guitarra para tocar uma canção de que só vagamente se recordava, tinha como possibilidade única torná-la – essa, e tantas outras – sua. Pegava em letras, reordenava-as; dava-lhes novas palavras, métrica e melodia. Diz que “a tradição tem que ser mantida viva para que seja tradição.”.
Lula Pena toca um fado a que tira o f, assumindo-se, sem drama ortográfico mas com crença, como phadista – o seu primeiro e único CD, de 1998, intitulou-se precisamente ‘Phados’. Vivendo imersa nesta relação tão singular com o som, com a história, com a memória e com a forma de carregarmos para todo o lado tudo o que vimos, observámos e aprendemos, podemos pensar em Lula não só como uma das grandes inventoras do fado, mas como alguém que verdadeiramente o vive e segue vivendo. Porque o leva para todos os portos mediterrânicos, em direcção ao francês para que tenha mais com que falar do amor, para o Brasil e América Central quando o balanço assim o dita, e dizendo a palavra em inglês quando tem de ser.
Estudou desenho, parou, mas ainda lhe ouvimos a precisão caligráfica em cada nota que produz. No dia em que conseguiu galeria em Barcelona celebrava o feito e foi assaltada, ficando sem todo o trabalho que ia expor. Lembraram-lhe que ainda tinha uma guitarra. Tocou nas ruas, partiu para Bruxelas, onde actuou em bares e em clubes de jazz. Tocou na Alemanha, França, Itália, Holanda e para o Rei Mohammed V em Marrocos, depois da Orquestra Real e com Rabih Abhou-Khalil por perto. Um concerto seu a muitos quilómetros daqui foi uma prenda de um marido romântico no sexagésimo aniversário da sua esposa.
Tantos ao longo dos anos amaram a sua música. Mas a sua “desidratação” das maquinações da indústria levou-a a considerar desistir por inteiro do ofício e do negócio, a recolher-se, chegando a recusar vários concertos. Diz que “a velocidade é uma coisa que não é humana”, e que o seu é um “trabalho que vem de dentro para fora – [o de] tentar perceber a tecnologia humana”. Aos grandes que assim operam, e só operam deste jeito porque são infinitos, temos que estar gratos por existirem, sendo sérios e leves ao mesmo tempo. Talvez Lula tenha estado demasiado tempo longe de quem entende que ela é lindíssima porque é como é, daqueles que acham que é um prazer dar-lhe espaço para que partilhe tudo o que em si contém e de si sai, numa torrente tão inquebrantável quanto calma. Os livres têm as suas próprias regras; os livres de coração bom têm regras em que podemos confiar.
‘Troubadour’ é um “organismo vivo que dá e recebe”, onde podemos encontrar uma Lula Pena gloriosa e crua, sem limites, com espaço para respirar e ser concisa – na composição, nas suas inimitáveis rapsódias, na tremenda entrega emocional, na voz incomparável. Diz que, em disco, “tudo são tentativas de” em jeito de canção, “uma leitura encriptada que temos que fazer do mundo constantemente”, mesmo que depois acrescente: “o que eu oiço jamais poderá estar num disco”.
O palco é hoje encarado de forma bem diferente do tremor do início da sua carreira, da “purga” que era para si esse processo. Esse “risco enorme” que assumia obrigou-a à humildade e delicadeza de “actuar e sentir as pessoas”. Em concordância com a soltura de ‘Troubadour’ diz que “não quer produzir discos fechados”, para que quem a vá ver em concerto tenha “a menor memória possível”; para que cada momento que partilha com o público seja único, uma comunhão ritual da descoberta da criação, de momentos e reacções que existam exclusivamente numa ocasião.
Nas suas palavras, procura uma “tradição à escala universal. Em cada esquina está uma presença divina que nos permite chegar a essa escala”. Se questiona “o fado dessa maneira é para [se] sentir livre, [e para] comunicar essa liberdade”, porque “o artista é o que consegue expandir implodindo-se a si e ao mundo”, “fazer com que a poesia seja a divisa deste mundo. Nada mais”. Independentemente da ideia que lhe ouvimos, ou do ponto em que lhe começamos a seguir o raciocínio, é esta sua teia de coerência, espraiada por todas as frases, gestos e dias, que temos o privilégio de escutar na sua música.
Está reunida a constelação de circunstâncias e acontecimentos para que, finalmente, possamos viver a Lula Pena que sempre quisemos ver, para que a possamos mostrar àqueles com quem partilhamos as coisas mais preciosas, e para que esses alarguem ainda mais o círculo. Um inquestionável tesouro nacional, contemporâneo, irrepetível, em música, expressão e som, que nos dá o dom de melhor aprendermos a viver os dias como mais nossos, mais belos, porque de todos. “Se somos capazes de amar individualmente porque não aceitamos o amor numa escala maior?”.
Pedro Gomes / Filho Único
Este “Troubadour” é também, de certa forma, o culminar de um processo metalinguístico e metamusical que, ao longo dos anos, transformou em autora alguém que nasceu como intérprete. Independentemente da matéria-prima de que dispõe, compare-se o que aqui se ouve com os temas reunidos em “Phados” e a impressão que fica é que passou a ser mais sua toda a música que já existe no mundo. Porque o gosto e o culto da citação se tornaram acessórios a uma vontade expressa de transmutação. É um facto que paralelamente se traduz numa técnica à guitarra em tudo tão pessoal quanto a vocal, embora mais secreta e baseada numa gestão do silêncio absolutamente ímpar, como um rio que corre subterrâneo, espelhando movimentos à superfície e multiplicando-os infinitamente num jogo de reverberação e dissonância. Como não poderia deixar de ser vindo de alguém que muitas vezes fala em labirintos, são, voz e guitarra, possibilidades para que se percam os seus ouvintes.
Por mais que nos custe – porque sabemos que o mundo seria melhor com mais discos seus – parecem ter sido necessários todos estes anos longe do escrutínio público para que ganhasse mais profundidade um estilo que, pedindo emprestado ao fado, à bossa, a rancheras, ao tango, à chanson, ao flamenco, a tudo, não se pode hoje dizer que pertença a mais alguém. Ou, inversamente, disso que lhe é extrínseco depende tanto que a sua razão de ser pode ser essa mesmo, dispor-se de forma frágil à vontade dos outros. É um exercício em que se oculta e revela sabendo-se que na troca algo se perde e ganha.
Nota final: embora no disco não se apresente desta forma, “Troubadour”, esquematicamente, divide-se em sete actos por agora assim organizados, mas flexíveis: o primeiro acolhe uma conversa de rua, como que evocando esfera pública e privada, e inclui o tradicional “Quanto é Doce”, um original de Lula sobre um poema de António Cícero e “Divina Santa Cruz”, o tradicional beirão. O segundo é marcado pelo fado “As Penas”, profundamente transfigurado e associado a “Dá-me Uma Gotinha de Água”, tema popular alentejano. O terceiro acto é todo ele de autoria de Lula. No quarto, combinam-se dois fados importantes (“Cansaço” e “Fado de Cada Um”). O quinto passa para o fado “Libertação” e refere a balada açoriana “Os Bravos”. No sexto ouve-se a alentejana “Ribeira Vai Cheia” e o fado “Dança de Volta”. No sétimo, e último, surge a “Rosa”, de Lula. Nada disto são versões propriamente ditas, mas são chaves de leitura, possibilidades de tradução, integrantes de um todo em constante fluxo e refluxo que em muito as transcende.