segunda-feira, 18 de maio de 2009

Tó Trips "Guitarra 66"

Nova edição Mbari já à venda. Eis a apresentação:

Poderá não ser à primeira vista evidente, mas “Guitarra 66” é tanto um disco sobre o Mundo quanto sobre Portugal. Porque à ideia de reunir impressões de viagens e ecos de terras distantes se impôs também a voz do coração – enfim, nada de novo para o viajante que reconhece ser no fim do caminho que se encontra a si próprio. Mas longe de se revelar uma crónica, o álbum é antes o generoso depoimento de quem sabe ainda que, por vezes, nos basta o vento que sopra na copa das árvores. Nessa perspectiva, revalida a dimensão poética de um gesto que é sempre exigente e nem sempre fácil: o de olhar o Mundo sem ter obrigatoriamente de lhe encontrar um sentido. E para isso bastará a inesgotável sede de descoberta de quem insiste em fitar a linha do horizonte. De outra coisa não falará quem por tantas vezes se soube reinventar e, mais precisamente, sobreviver.

A reflexão conduz-nos à temática – essa sim uma evidência, logo a começar no título – que funciona como fio condutor desta acção a solo: isto é, o primeiro disco em nome próprio de Tó Trips é sobre o Tempo. E, como não poderia deixar de ser, sobre a perspectiva pessoal de quem sabe que a aventura arranca mal se respira pela primeira vez. Tó nasceu em ‘66, a 23 de Janeiro. Tem 43 anos. E acaba de produzir um belo e directo testemunho sobre tudo o que isso significa.

Naquilo que se chamava Música Moderna Portuguesa, o impacto da primeira banda de Tó Trips – os Amen Sacristi – foi conjuntural. Frequentadores dos concursos do Rock Rendez-Vous lembrar-se-ão deles. E coleccionadores de rock português poderão ter alguma das K7s ou compilações nas quais entre ‘86 e ‘89 figuraram. Tó recorda-os como influenciados pelos Chameleons. A referência, no seu percurso, surge associada aos nomes de Big Black (de Steve Albini), Glenn Branca e, naturalmente, Sonic Youth. Ao fechar a década foi convidado por Jorge Ferraz para ingressar nos Santa Maria Gasolina em Teu Ventre, com os quais gravou um EP. Se o combustível desses terminou, Tó não dava sinal de abrandar, fundando os Lulu Blind. O arranque é apoteótico, culminando em ‘93 na histórica primeira parte do concerto dos Sonic Youth no Campo Pequeno e, pouco depois, na abertura para os Manic Street Preachers no Pavilhão Carlos Lopes. Em ‘94 editam “Dread”. Mas em Portugal, ao contrário do que se passou um pouco por todo o mundo, o underground não se tornou no mainstream. E como a de tantas bandas do período (que na altura enchiam o Johnny Guitar), a história dos Lulu Blind acaba por reflectir também o contínuo desagregar do interesse do público “alternativo” pela música portuguesa ao longo da década de noventa. Não seria de estranhar que se impusesse uma mudança de ares capaz de corresponder a novas vivências. E o aparecimento do projecto de Tó com Pedro V. Gonçalves – os Dead Combo – não tentará satisfazer outra ambição. Fiel ao tempo que o viu nascer, a dispersão estilística concentrou público. E tudo o que aconteceu nos últimos cinco anos poderá ter contribuído para que Tó, de uma só vez, pensasse em escancarar as portas que permaneciam fechadas.

Guitarra 66” não terá precedentes na música em Portugal – nem poderia ter, nem isso é importante. E pode ser que a maior ligação à sua história seja a de contar com um engenheiro de som tão importante quanto Tó Pinheiro da Silva. Aqui trata-se de criar um novo mundo mais silencioso a partir de fragmentos melódicos derivados de uma estética de ruído, na qual Tó sempre se movimentou. E num momento específico em que a música portuguesa se torna mais intensa e vibrante. Só que neste caso materializa-se também algo que se impôs, ao fim de mais de duas décadas, como uma necessidade artística: reflectir um olhar individual. Tó resume de forma muito pragmática o ponto de chegada: “um disco romântico, mediterrânico e com raízes portuguesas. Um disco ibérico e virado para o Atlântico. Cruza viagens pelo deserto africano, evoca bairros latinos nos Estados Unidos, imagina mares do sul”.

Na capa está a sua mulher, Raquel Castro, numa janela debruçada sobre o Cairo – é ela que se vê mal se abre o disco, por entre as palmeiras de São Tomé e Príncipe, e é então que se percebe que a si são dedicadas estas canções. Do nascimento à vida em casal, “Guitarra 66” evoca ciclos. E é, paralelamente, uma profunda reflexão sobre as liberdades e responsabilidades criativas do artista numa cultura que de tanto valorizar a diferença começa a ser incapaz de distinguir seja o que for. Isto é, Tó nunca se esgotará numa fórmula de sucesso.

Guitarra 66” tem uma relação ambígua com a tradição. Não seria num disco de guitarra clássica a solo que Tó se deixaria toldar pela admiração por Carlos Paredes, já assimilada aliás nos Dead Combo. E embora viva de “influências” insiste antes em despistá-las. A sua técnica é digressiva e elíptica. Veloz como poucos na apresentação básica de melodias, prefere deixar-se guiar pela intuição do que as conduzir a porto seguro – é como o caminhante que anseia chegar a caminhos que se bifurcam. A metáfora da viagem ganha tradução directa em muitos temas. Também neles, nem sempre se vai de A a Z numa linha recta. Mas falávamos em tradição, porque convirá relembrar que nada de tão ficcionado como isto poderá ser tradicional. Cada tema revela-se uma construção. Se a atitude de Howe Gelb “inspirou” os Dead Combo, a de Marc Ribot (no seu LP acústico de ’93 “Solo Guitar Works of Frantz Casseus”, por exemplo) desde logo “influenciou” Tó Trips. Mas nada disso, depois, transparece na música. Porque ninguém em lugar algum – e este é o seu maior triunfo num contexto de tão extenso repertório – poderia ter produzir um disco assim.