sexta-feira, 29 de maio de 2009

Tó Trips no ÍPSILON (I)

Entrevista de Vítor Belanciano. Aqui.

"Em "Guitarra 66" Tó Trips, dos Dead Combo, parte à descoberta do Mediterrâneo, do Atlântico, de Portugal, de uma mulher. E encontra-se consigo próprio.

É mediterrânico, ibérico, com vista para o Atlântico, cruzando viagens pelo deserto africano, evocando bairros latinos nos Estados Unidos. Mas "Guitarra 66" é essencialmente Tó Trips e a sua guitarra, ondulando por emoções dedicadas a uma mulher, Raquel Castro. É o seu primeiro álbum a solo e, na forma despretensiosa como se insinua, revela-se objecto surpreendente.

Algumas das sombras que expõe já se descobriam noutros projectos pelo qual dá a cara, nomeadamente os Dead Combo e, mais recentemente, numa aventura com Tiago Gomes à volta de textos de Jack Kerouac. Mas ainda assim é outra coisa, temas instrumentais poéticos mas escorreitos, enxutos, mostrando alguém que passou por colectivos rock eléctricos (dos Santa Maria Gasolina em Teu Ventre aos Lulu Blind) mas que se descobre por inteiro nos acordes de uma simples guitarra acústica.

No contexto dos seus projectos qual o lugar deste álbum?
Nunca me passou pela cabeça lançar discos em nome próprio. Sempre gostei de bandas, de tocar em grupo. Mas como gravo quase todos os dias, tinha necessidade de por cá fora estas coisas.

Os temas foram registados ao longo dos últimos anos?
Sim, embora estivessem inacabados. Ao longo do tempo houve um processo de descoberta de cada um deles, em que fui acrescentando sempre coisas. A selecção natural acabou por surgir no interior desse processo de revelação. Depois, durante uma semana, em Esmoriz, terminei os que estavam inacabados.

Nos Dead Combo, ou no projecto com Tiago Gomes à volta de textos do Jack Kerouac, está sempre implícita a ideia de viagem. Neste também. Mas é uma jornada introspectiva.
Sim, é um disco muito mais pessoal. Desde puto que gosto da linha do horizonte. Olhar, ver, pesquisar. Gosto de planos abertos, de paisagens a perder de vista. Há dois anos fui pela primeira vez a Marrocos e confrontei-me com isso. O Alentejo puxa também por essa dimensão. É uma região que aprecio muito. Adoro também o mar. Quando estava lixado com a vida ia à praia apenas para olhar a linha do horizonte. Como se fosse uma linha de esperança. Depois daquela linha sabemos que estão outras gentes e essa ideia tem qualquer coisa de reconfortante. A praia é dos pouco sítios onde consigo estar sem fazer nada. Passo horas a olhar para o mar sem fazer nada. Só, ali. Equilibra-me, talvez.

O céu tem também essa dimensão de infinitude.
Sim. Adoro ver os aviões a fazer riscas no céu. Às vezes pergunto-me: "Aaquele pessoal irá para onde?"... [risos]. Existe um lado romântico nisto, claro. Há um filme que já vi para aí vinte e tal vezes, "A Revolta na Bounty", que tem esse lado idealizado, presente na relação com o mar, na relação entre as personagens.

Este é um disco que viaja por várias latitudes - África, Espanha, EUA - mas ao mesmo tempo parece não sair daqui.
Gosto de me sentir português. Temos coisas tão porreiras. No mundo globalizado, é bom sentir que podemos transportar qualquer coisa de nosso. Mas também me revejo em Espanha, no flamenco, naquele lado cigano. Hoje em dia irrita-me um pouco a cena do fado. Todos os dias nascem fadistas. Parece que só há aquilo para expressar. No outro dia vi uma espanhola a cantar fado em castelhano e aquilo soou-me bem. Pensei: "Porque não?"

O flamenco é, aparentemente, mais físico que o fado.
Tenho apetite por essa dimensão física. Pode ser apenas um tipo a tocar piano, mas gosto de perceber essa extensão nele.

Tem alguma nostalgia dos concertos rock?
Tenho. É outro tipo de abordagem. É uma coisa mais virada para fora, para o exterior. Tem qualquer coisa de explosão, de purificador. Até aos Dead Combo a música para mim era descarga, energia. Isso mudou. Este disco é uma coisa contida.

Na banda rock há também o lado do grupo, da camaradagem. É um bando. Este é um disco solitário.
Tem piada porque, no passado, expressava-me no plural quando queria falar de mim. Utilizava a expressão "a malta" ou "o pessoal" quando, no fundo, queria dizer "eu". O rock tem muito isso, o grupo, a malta. Mesmo a falar com pessoas com quem vivi utilizava a expressão "a malta" para falar de mim. Às vezes perguntavam-me: mas quem é "a malta"? Respondia: "Sou eu."

O estar em grupo dava-lhe uma sensação de segurança?
Sim. A partilha da responsabilidade. Mesmo nas fotos de grupo já sabia como me posicionar, qual a postura a adoptar. Como se soubesse que imagem projectar. Acontece isso com os Dead Combo também. Só é diferente. Estou mais desprotegido.

Podia ter criado uma personagem para este disco.
Não. Foi a primeira vez que utilizei fotos naturalistas, normalmente tenho sempre a tentação de mexer nas imagens.

Mas nesse movimento solitário, pressente-se que este é também um disco que evidencia alguém que se reencontrou consigo próprio. Vamos arriscar: alguém mais feliz.
É verdade... [risos]. Sou um gajo feliz.

É também o disco para a sua mulher.
Sim. Tenho a certeza que a encontrei. Essa mulher.

Este disco é também muito ela?
É. Aprendo muito com ela. É alguém que também gosta muito de viajar e, a nível musical, possui uma grande curiosidade - muito mais até do que eu - em procurar coisas novas. Com ela descobri música a que antes não ligava nenhuma e aprendi a ligar mais aos aspectos puramente sonoros também.

Como é que viajam? Com tudo preparado previamente?
Não. Marcamos um sítio, mas não temos uma agenda para cumprir. Depende muito. Recordo-me de uma viagem ao País Basco em que arrancámos sem nada arranjado.

A fotografia da capa do disco foi tirada onde?
No Cairo. É uma pensão, com terraço. É de um egípcio casado com uma francesa. Dentro do CD estão fotos de S. Tomé, Nova Iorque, Marrocos. É o nosso imaginário romantizado. Conhecemo-nos em Lisboa, mas pouco tempo depois fomos a S. Tomé e Nova Iorque e deu para perceber que nos entendíamos. Acabamos por nos descobrir também em viagem.

Em alguns temas pressente-se a influência, mais subliminar do que real, de Carlos Paredes que é alguém que, para além de Ricardo Rocha ou de Norberto Lobo, não criou descendência. Como é sua relação com a música dele?
Sempre gostei do Carlos Paredes. Tem um tempo a tocar muito próprio, de tal forma que era preciso alguém especial para o acompanhar. O som dele passa muito pelo espaço. Ouve-se o mar nele. Há um tema neste disco, "Esmoriz", onde gostava que se ouvisse também o mar. Gosto dos temas que têm essa capacidade de sugestionar. De criar ambiente. De propor imagens, talvez.

O título do disco evoca a ideia de viagem, mas é uma remissão também ao ano em que nasceu. Por alguma razão?
Não. É uma mistura de "Route 66" com o meu ano de nascimento. Gosto da malta que nasceu nesse ano... [risos]. O [actor] Miguel Borges ou a [coreógrafa] Vera Mantero, amigos, são também de 66. Não sou de signos, mas gosto dessas imagens.

No seu passado rock identificavam-no com o punk. Se o punk é a exposição sem simulacros, independentemente do apuro técnico, este é provavelmente o seu álbum mais punk.
Hoje ligo muito mais à técnica, mas é verdade que na música sempre me interessou mais a atitude e a personalidade. Se herdei alguma coisa do punk, foi essa vontade de ir para a frente com as coisas, independentemente de ser ou não um dotado. Ter consciência dos seus limites e passar alguma coisa às pessoas pode ser um objectivo muito saudável. Este disco foi também um bocado purga, porque sempre fiz as coisas em colectivo.

Há umas semanas, num debate, afirmou que nunca havia ganho dinheiro com a música, é mesmo verdade?
Exagerei um pouco, claro. Ganho, mas não é significativo. Não consigo viver só disso. Mas gosto de estar relacionado com a música de todas as formas. De fazer posters. De trabalhar imagens para outros músicos. Gosto tanto de ir a concertos como de tocar.

Já percebeu porque é que faz música?
Faz-me muito bem à saúde! É inteiramente verdade."