quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Jorge Cruz "Barra 90" (Apresentação)

Praia da Barra (99)
Acho que esta canção foi feita propositadamente para as gravações caseiras d’“o pequeno aquiles”, em 99. Tinha um Fostex de quatro pistas no quarto de hóspedes da casa dos meus avós, que nessa altura se encontrava à venda. A casa ao lado, dos meus pais, onde cresci, tinha sido vendida um ou dois anos antes. Ali a 100 metros, junto à ria, havia um pontão para os barcos pequenos atracarem onde era costume ir sentar-me durante o ano, quando tudo estava silencioso, ou no Verão, para fugir ao rebuliço dos banhistas. O local parecia reter a simplicidade de uma infância desaparecida. A família saiu em definitivo da Barra no fim dos anos 90.

Um de Nós (96)
Esta foi a primeira canção minha que ouvi passar na rádio. Tinha feito os envios do disco de estreia dos Superego (“Quem Concebeu o Mundo Não Lia Romances”, 98) e pus-me a ouvir o “100%”. O Henrique Amaro abriu o programa com este tema. Não foi uma boa sensação – tudo estava demasiado exposto. Eu não soava como os cantores das outras bandas nem nós tocávamos ou gravávamos bem as nossas músicas como as outras bandas. Ainda assim, a canção sobreviveu. Para este “Barra 90” decidi brincar com ela tratando-a como uma malha à Timbaland em honra da pop para massas que me fez inicialmente apaixonar pelo mundo das canções.

Tornados (98)
Esta canção de dois acordes na sua versão original (gravada para “o pequeno aquiles”) procurava juntar referências da altura: os Palace de “Arise Therefore”, Smog e Red House Painters. Dedilhava-a muito lentamente e quase nem parecia ali haver música. De certo modo, acho que a canção que existia por trás daquelas notas esparsas seria algo próximo do que aqui gravámos. Sendo que na verdade só soou a música a sério quando pusemos o estúdio às escuras e a Márcia cantou baixinho.

Entre Iguais (93)
Quando comecei a escrever canções procurava temas mais genéricos do que os que viria a utilizar mais tarde. Não conhecia canções sobre amor homossexual e escrevi esta inspirando-me num amigo gay da minha irmã que era daqueles fãs de Madonna que iam a Paris ou a Madrid na tour do “Erotica” e dormiam na rua junto aos hotéis onde ela ficava. Numa fase anirvanada dos Superego tocávamo-la em locais hostis e eu e o baixista dávamos um beijo na boca – o público ficava enraivecido. Com esse historial de provocação era a canção certa para o Fachada. Ele tocou em todas as músicas deste disco e fez um brilhante trabalho de co-produção, mas só podia cantar aqui.

Filipa, NY/T-Shirt (95)
‘T-shirt’ foi uma espécie de epifania no repertório de Superego. Como é que seria possível falar do mundo a partir de um quarto fechado? Esta canção parecia responder à questão. Quase tudo nesta altura era uma espécie de adiamento do mundo, de fechamento, de agorafobia. O maior contraste em relação a esse sentimento era a vida da minha irmã, que acabara de partir para Nova Iorque com o sonho de se tornar uma actriz famosa. Um dia recebi pelo correio uma cassete que ela me tinha gravado com os sons à sua volta. Nesta nova versão decidi usá-los, juntando ao quarto fechado da ‘T-shirt’ o restaurante português em Manhattan onde ela trabalhava, e a sábia Luzia, que lhe explicava o que era preciso para se ser alguém ali.

36 (94)
Quando estava a decidir que canções regravar para este disco fui ouvir cassetes antigas, de ensaios, maquetas e ideias dispersas, e encontrei esta, de que me tinha já esquecido. O que me interessou nesta música com um estranho título foi ter existência prévia à minha primeira audição de Will Oldham e da sua maneira única de escarrapachar em canções histórias perversas e misteriosas que não se chegavam bem a entender. Lembro-me de na altura me identificar em imediato com esse universo. Não foi preciso imitá-lo – há algum tempo que as coisas me estavam a sair de maneira algo semelhante.

Exausto (97)
Esta era mais uma daquelas canções de Superego que não cabia na nossa indecisão entre sermos uma banda de rock emocional, de funk à “In Sound From Way Out” (Beastie Boys) ou de trad-roque. Obviamente foi parar a “o pequeno aquiles” mas não perdeu o seu marco no discurso daquele tempo. Aqui foi salva por uma bateria do David Pires que ao apontar para Tom Waits acertou no Peter Gabriel circa “So”. Quanto aos coros à Annie Lennox, peço desculpa, mas não consegui resistir.

Roupas - parte 1 (97)
‘Roupas’ é uma sequela de ‘Exausto’ – a melodia é a mesma. Esta, sim, foi usada para fechar o primeiro disco de Superego. Juntei-lhe “parte 1” porque a SPA não aceitou o título, que já existia. E assim tornou-se numa prequela de ‘Roupas (parte 2)’, que fecha o meu primeiro disco a solo, “Sede”, de 2004. O feedback que se lhe segue podia ser o único som de toda esta viagem ao passado. Numa canção do “Love & Theft” [‘Summer Days’] alguém diz à personagem principal “You can’t repeat the past”, e a voz do Dylan responde: “You can’t? What do you mean you can´t? Of course you can”. Mas não sem a sensação de estar a repisar um longo e tortuoso caminho.

Lugar Privado (98)
Esta foi sempre a minha canção preferida de Superego. Na versão original havia um solo de guitarra eléctrica que tentava imitar o Mark Kozelek a imitar o Neil Young. Aqui a magia é toda do Fachada. Eu limitei-me a fazer de claque e a juntar um feedbackzinho no fim.

Jorge Cruz, Outubro de 2011


Nota biográfica:
Jorge Cruz começou a compor em 1990. Nascido em 1975, viveu até aos 10 anos na Praia da Barra, Aveiro. No ano de 1985 mudou-se para o Lobito, Angola, onde fez o primeiro ano do ciclo preparatório. Regressou a Aveiro no ano seguinte. Entre 1989 e 1991 viveu em Almada. Regressou à Praia da Barra onde viveu até 1998, altura em que se mudou para o Porto. Em 2006 passou a viver em Lisboa. Com os Superego editou “Quem Concebeu o Mundo Não Lia Romances” (1998) e “A Lenda da Irresponsabilidade do Poeta” (2001). Em 1999 editou um disco gravado em 4 pistas sob o nome de “o pequeno aquiles”. A solo editou “Sede” (2004) e “Poeira” (2007) de onde se retiraram singles que ganharam popularidade como “Adriana”, “Fado de Uma Rua Qualquer”, “Nada” ou “Anda Menina”. Em 2008 fundou os Diabo na Cruz e um ano mais tarde a banda estreou-se com “Virou!”. O disco foi considerado um marco na música nacional pela forma como integrou sonoridades de música tradicional e de rock contemporâneo. Desde então o grupo tem-se destacado pelos concertos explosivos, perto de 100 por todo o país no espaço de dois anos. Produziu discos dos Golpes, dos Pontos Negros e de João Só e os Abandonados. Co-produziu discos de B Fachada e de João Coração. Participou em discos de More República Masónica, de Tiago Guillul e de Samuel Úria. Escreveu letras para discos de Movimento e Amor Electro. Ultimamente tem-se dedicado exclusivamente à composição para o segundo disco de Diabo na Cruz.