Ouvem-se as melodias de “Tigrala” como canções da evolução. Nelas tudo se faz de madeira, metal, pele e tripas, tudo é telúrico e simultaneamente folclórico. Possuem também um impulso celebrativo profundamente honorífico que por vezes poderá aparentar sucumbir perante o peso da vida. Mas logo lembram o amanhã. Talvez por imitarem os elementos – escorregadias, empoeiradas, ardentes, vaporosas – toquem no cordão da esperança ou, por outro lado, talvez contagie darem mostras que querem viver para sempre. O que se afigura absurdo é dizer-se que têm apenas um ano. O inacreditável – de virem de décadas, séculos, milénios de transes e crenças – mostra-se mais credível sempre que as ouvimos. O impossível – a metafísica, o sobrenatural – sustenta-as num abraço ficcional que dispensa a fé e que, aqui, se poderá bem ficar pelo gozo ritualista. Evocá-lo significará suspender a acção num gesto onírico. Outro caminho.
Ouve-se “Tigrala” como se liam antes os livros de aventuras: suspensos num estado de deslumbramento e envolvência com aquilo que apenas simula a realidade mas que, inevitavelmente, em muito a transcende com as suas promessas ilimitadas de exotismo, risco e camaradagem. E evoca a acção tantas fantasias – as dos lugares distantes, das paixões eternas, da infância revisitada, da comunhão com a terra e com o mar – que a maior será mesmo aquela que nos faz acreditar ser esta música de um sítio específico quando, no fundo, sonha em ser de todos. Por vezes esconde-se esse desejo nos ensolarados círculos perfeitos desenhados pelo vibrafone, noutras adivinha-se a aspiração nos trilhos e casas que constroem os blocos de acordes saídos da guitarra, e há alturas em que, para o percebermos, basta seguirmos as notas soltas da tambura que, como lianas, trepam por solo e céu até, gotejantes, regressarem das nuvens para tudo cobrir. Porque sabem ter de proteger este terreno livre em que cantam. Por isso, enquanto se espantam maus espíritos, abre o disco com uma oração.
“Tigrala” não consegue estar quieto. Custa seguir tanto movimento, imaginar tanta agitação. Há alturas em que é como se nos rodeasse um enxame de abelhas. Noutras é só uma dança. O mais esquemático nos seus temas é sempre convulso, com ritmos sobre ritmos, ziguezagues harmónicos, saltos no tempo. E uma constante ameaça de romaria. Mas não há povo para a seguir. Há Norberto, Guilherme e Ian Carlo com cabeças cheia de discos. Há histórias de Steve Reich a aprender tambor no Gana, de Hermeto Pascoal a tocar pífaro para os passarinhos em Alagoas ou de Don Cherry a espalhar poesia pela Suécia, de instrumentistas magos, de mestres e discípulos. Há ainda, claro, tribos perdidas, templos envolvidos por mata, estradas sem fim, signos e símbolos, muitas viagens. Mas mesmo com tanto rodopio, com um frenesi tropical a soltar-se das cordas e tambores, procura-se, acima de tudo, a paz. Por isso em tantos momentos ao longos destes 40 minutos se insinua estar a começar algo de novo a partir de materiais exaustos. Se tivéssemos também de o fazer e voltar atrás, diríamos que ouvindo “Tigrala”, no fundo, se ouve uma história de devoção por algo tão simples quanto a amizade.
Porque, ao fim e ao cabo, “Tigrala” não é bem deste mundo. Mas mereciam todos os que cá andam ouvi-lo para crer.