Em certa medida, 2010 foi o ano do grupo em que toca B Fachada, os Diabo na Cruz. Num surpreendente somatório de 40 concertos calcorrearam o país queimando fitas, lançando foguetes, recebendo caloiros e emigrantes, levando alegria a muitas praças, encharcando auditórios, ultrapassando em larga escala qualquer rider artístico que à sua frente se atravessasse e, como no IST, incentivando ao motim da praxe. Seria o suficiente para imaginarmos que nos tempos livres os seus membros desejassem apenas comer bem e dormir melhor. Mas, pelas mais variadas razões, as coisas na música portuguesa nunca são bem como as imaginamos.
No caso do Bernardo parecem por vezes transportadas para uma agenda hiper-realista em que sucessivamente se questiona a sua verosimilhança com a vida real. Porque se tivéssemos de lhe aplicar as regras que nos deixaram os nossos antepassados da indústria discográfica, 2010 teria sido o ano para promover e efectivamente rentabilizar o álbum “B Fachada” junto do – suspiro – ‘grande público’. Mas não estava escrito. Ao invés, seguiu-se outro caminho muito à custa da incessante actividade do próprio Fachada.
Em doze meses de esgotante exposição mediática (em que não passava uma semana sem aparecer numa publicação, numa rádio, num programa de televisão e disseminado por uma infinidade de sites e blogues), para além de tudo o que diz Diabo na Cruz encontramos: em Janeiro, um concerto numa leitaria, a apresentação no auditório do Montepio e a nomeação para Melhor Canção (‘Tempo para cantar’) no Prémio Autores 2010; em Fevereiro, a centésima Quinta de Leitura; em Março, concerto na ZDB e outro em Espinho; em Abril, uma sessão no Musicbox com Carminho e Pedro Abrunhosa e outra em Coimbra; em Maio, no Lux, a primeira parte de Vashti Bunyan seguida de dois concertos no Algarve e da gravação com Sérgio Godinho de um encontro para a Nokia; em Junho, espectáculo em Aveiro e ida para estúdio; em Julho, disponibilização para download gratuito (10.000 e a contar) do resultado, “Há Festa na Moradia”, que ganhou edição física em Agosto num vinil de 10” limitado a 500 exemplares; em Setembro, o lançamento da campanha Tradições Renovadas do azeite Gallo na qual recebeu carta branca para reinterpretar ‘Rama’, Tiago Pereira estreando o vídeo para ‘Joana Transmontana’ filmado in situ e “Há Festa na Moradia” cantado oficialmente numa concorrida festa de fim de Verão no Clube Ferroviário; em Outubro, um concerto na Sociedade de Geografia de Lisboa ao lado de Lula Pena e JP Simões e imediatamente a seguir o regresso a estúdio para a gravação de “B Fachada é Pra Meninos” ao mesmo tempo que se anunciava a sua participação no Super Bock em Stock com Sérgio Godinho como convidado especial. É obra. E como nascem canções assim no meio de uma agenda destas só ele saberá.
Ao que não será indiferente a contínua evocação daqueles versos de ‘Zappa Português’ – “vou ser bastante puritano/ pra quê? pra quê?/ para fazer dois discos por ano” – primeiro levados à letra, posteriormente encarados como um leviano capricho e agora tornados regra. Mas mesmo que chegue a altura em que saiba a pouco um Dezembro sem novo disco seu, por enquanto, porque há mesmo que aproveitar uma inspiração ilimitada, não há razões para ressacarem os que se habituaram à ideia. Após o virulento “Há Festa na Moradia” surge “B Fachada é Pra Meninos”, para nós, o mais coeso e distinto conjunto de canções que até hoje produziu.
Desde logo ao arriscar a conceptualização. Mas principalmente porque, aproximando-se do vasto e progressivamente difuso, frequentemente absurdo e ocasionalmente excêntrico universo infantojuvenil, não perde o rumo. Isto é, estas localizadas reflexões sobre a experiência de crescer têm origem nos mesmos impulsos que o conduziram até cada um dos seus discos, provando que consegue ser mais directo e simultaneamente irónico quando o assunto deriva de questões de moral. E, nem é preciso dizer, fugindo a sete pés da condescendência em que caem muitos dos que cantam para e sobre crianças. Porque, embora nem sempre pareça quando olhamos para os escaparates das secções nas lojas, há diferenças entre música infantil e música sobre a infância.
Este é igualmente um primeiro disco de banda. No que daria um trio de jazz ao jeito das lides nacionais, Bernardo (vozes, guitarras, teclas, percussão, etc), Martim (contrabaixo e baixo elétrico) e Mariana (duas baterias plásticas de bebé compradas numa loja de brinquedos) combinaram instrumentos que de certa maneira tornaram ainda mais harmoniosas canções que nasceram umbilicalmente ligadas umas às outras. A ideia de as miniaturizar veio enviesada de Pascal Comelade mas a inevitável expansão que sofreram evoca antes aqueles discos infantis de Toquinho e Vinicius que em mais do que uma ocasião Fachada citou em entrevistas (embora a sobreposição acústico/eléctrico, por exemplo, lembre, neste contexto, o Marcos Valle de “Vila Sésamo”). Seja como for, como em “Há Festa na Moradia”, prolonga-se aqui uma preocupação formal com o ‘som’, sendo o deste cristalino e directo onde era o do outro distorcido e processado. Dos discos brasileiros da infância veio também a ideia de convidar cantoras, numa escolha eminentemente biográfica: de outros tempos Francisca Cortesão, com quem partilhou campos de férias em menino, e de hoje Lula Pena, com quem pensa desenvolver mais parcerias.
“B Fachada é Pra Meninos” funciona também como uma metáfora. Em camadas de significados, manifesta uma contínua noção do seu autor face ao papel que tem desempenhado na recente produção local enquanto prolonga a ideia de que é tão possível dialogar com o que vem detrás quanto ignorá-lo. E, nessa perspectiva, não é inocente que ao estudo de páginas conhecidas do cancioneiro nacional-infante-o-trovadoresco tenha correspondido uma vontade de começar tudo de novo. De reeducar. Chamar as coisas pelos nomes e inverter valores dominantes de forma tão directa quanto: “Tó-Zé tu tem cuidado/ não sejas pau-mandado/ antes louco e malcriado que pensar só de emprestado/ toda a vida te vão dar o mundo mastigado/ tu começa a praticar para não ficares moralizado”; “assustaram-me com um velho e eu tento distinguir o bem do mal/ mas se a mãe é que decide sobre o meu comportamento que se lixe o pai natal”; “porque é que o bom é melhor que o mau?/ porque é que o mal é pior que o bem?/ porque é que é certo ser cara-de-pau mas está mal ser filho-da-mãe?”; “larga a sopa João/ não comas mais/ não dês ouvidos às mentiras dos teus pais”; “brincar/ fugir e desaparecer/ esquecer a escola e o dever/ fazer as coisas por prazer” ou “se a Manuela não puder deixar a mãe/ deixo eu a minha e parto sem ninguém”. É uma mini-revolução.
E é perversa a lírica de “B Fachada é Pra Meninos”. Pressupõe uma consciência sobre o que é ser criança que só negará quem nunca passou um dia trancado com alunos numa sala de aulas ou algo do género. Aqui são seres pensantes, actuantes, traficantes, o que se quiser. E falam na primeira pessoa. Sonham, aborrecem-se, morrem de amor a cada Agosto, sentem demais. Ao lidar com tão concreto material, Fachada acentuou uma dimensão onírica nos arranjos: há um exército de teclados de obtusa identificação convocado para o disco e um arsenal de inusitada percussão portátil que o pontua. Mas não ignorou totalmente a tradição, honrando-a com uma lengalenga – ‘Mochila do Carteiro’ – e uma semi-canção de embalar – ‘Barrigão’. E, como é hábito, há momentos – na letra de ‘Tó-Zé’ ou nas cinco notas finais de ‘A Casa do Manel’ casadas com as de ‘Tempo para Cantar’ – em que, afinal, tudo é sobre B Fachada.
Aliás, precisamente por se tratar de B Fachada, não será surpresa para ninguém que se revele maduro justamente ao apresentar canções para crianças. Logo no período de gestação se tornou óbvio que temas como ‘Primeiro Dia’, ‘Questões de Moral’ ou, mais uma vez, ‘A Casa do Manel’, indiciavam uma nova grandeza harmónica nas suas composições e que com ‘Agosto’ e ‘O Futuro’ arriscava um controlo mais adulto sobre os seus instintos rítmicos. Estas mudanças acompanham uma – à falta de melhor termo – atmosfera mais permeável ao registo confessional que muitas vezes se subentende nas suas crónicas de costumes mas que se revela aqui inesperadamente evidente.
A obra de B Fachada vive de todas estas leituras e, cada vez mais, de uma crítica que faltava à canção nacional, como força vital, natural e poderosa de comunicação. Que se pronuncie num estilo ainda mais mordaz e incisivo quando elege para parte do seu público-alvo os mais jovens só prova a sua pertinência.