segunda-feira, 23 de abril de 2012

Diabo na Cruz "Roque Popular" (Press Release, Entrevista com Jorge Cruz, Biografias, Concertos)


Lançado no final de 2009 e reeditado em versão dupla em 2010, “Virou”, o primeiro álbum de Diabo na Cruz, foi unanimemente considerado um marco na música nacional pela forma como integrou sonoridades de música tradicional e de rock contemporâneo, 25 anos depois do António Variações de 'Quem Feio Ama...'/'...Que Pena Seres Vigarista', por exemplo. Desde então o grupo destacou-se pelos concertos explosivos, perto de 100 por todo o país. 2012 testemunha o lançamento de “Roque Popular”, destinado a aprofundar o trabalho que ficou para trás e apontar novos rumos.

Ouvindo o novo disco pressente-se um impulso programático que pode bem reflectir-se naquela – mais que tradução – quase inversão topológica que lhe inspira o título. Partindo do estilisticamente genérico ‘pop rock’, cuja matriz anglo-saxónica é hoje evidentemente global e infinitamente extensível, Diabo na Cruz caminha para um específico e rigorosamente demarcado ‘roque popular’ que não se imagina possível em nenhum outro lugar do mundo nem sequer tão bem pronunciado por outrem.
É uma subversão endémica num grupo que não ‘foge como o diabo da cruz’ das polémicas relativas a identidade. Ainda para mais quando, como não poderia deixar de ser, esse singular código que veicula só se compreende num contexto cultural de relativa abrangência. Os equilíbrios entre individual e colectivo, moderno e tradicional, mito e realidade, urbano e regional, etc, são convocados pelas suas canções e revelam-se como pontos de fricção que, por sua vez, servem de pano de fundo a conteúdos políticos, sociais, íntimos.
Mas nada disto teria o mesmo impacto – que implica reconhecer “Roque Popular” como uma importante manifestação na música popular portuguesa do último decénio – se não nos chegasse embalado numa estética destemida, celebrativa e resolvida.
Estas e outras considerações serviram de base a uma conversa entre João Santos (editor na Mbari e crítico do semanário Expresso) e Jorge Cruz, onde se discutem as motivações por trás deste trabalho, as mudanças na formação da banda, as canções ou, inevitavelmente, um certo estado de coisas em relação ao país.


João Santos: Em “Roque Popular” aumenta a tensão entre a, chamemos-lhe, ‘música moderna’ e a ‘música popular’ portuguesas. E um dos temas do álbum – que associo a uma e outra – parece-me ser a fricção entre espíritos libertário e comunitário. Concordas? E, nessa perspectiva, onde é que situas ao certo o Diabo na Cruz neste momento?

Jorge Cruz: Concordo com a ideia de choque entre a necessidade de expressão de liberdades individuais e os compromissos da vida gregária num território que contém uma cultura, e de como esse boião conflituoso de interesses e expectativas se pode revelar nas ideias que cada um tem acerca do que deseja para si e para o seu país, quando vemos nesse país uma parte importante da nossa identidade. Era com esse tipo de matéria-prima que sentíamos que tínhamos de lidar num segundo disco de Diabo na Cruz, nomeadamente depois da forma como a nossa música, com as suas características, tinha sido recebida no primeiro disco. Ao arrancarmos para este disco, que pretendíamos que representasse uma visão sobre o nosso país, tínhamos consciência de que a temática está carregada de conotações político-partidárias e isso era algo de que desejávamos fugir. A política parece-nos um universo desinteressante, de significados pobres. As nossas aspirações levavam-nos para qualquer coisa ao mesmo tempo mais pessoal e mais amplo.

JS: Há uma frase que me interessou muito – em ‘Baile na Eira’ – que é quando cantas que ‘nós sabemos bem o pouco que queremos/ qualquer coisa de real/ até pode ser um povo”. Porque não só é o povo uma mutante entidade sujeita às mais perversas manipulações para justificar todos os sacrifícios, como, hoje em dia, sempre que se invocam os seus interesses é-se acusado de demagogia. E, no entanto, não se anda na rua sem se perceber que vivemos um tempo de profunda apreensão. É “Roque Popular” uma espécie de reacção a um medo colectivo – ou àquela apatia de que também fala ‘Bomba-Canção’?

JC: Sim, julgo que os conteúdos do disco foram surgindo em diálogo com essa apreensão e a noção que vamos tendo dela sob as mais diversas formas. Sendo que a intenção central para as canções era encontrar um plano atemporal para que elas não ficassem presas às contingências da actualidade, embora em certos momentos específicos parecesse importante fazer um zoom no presente para situar os nossos motivos. A questão do povo é interessante porque descobri ao longo do processo de escrita do disco que é uma das palavras mais difíceis de usar sem ficar imediatamente sujeita a interpretações erradas. A minha intenção de qualquer modo não foi a de nomear o povo enquanto classe mas sim o povo enquanto cultura num sentido abrangente que é a perspectiva que mais me interessa.

JS: Canções como ‘Luzia’ ou ‘Siga a Rusga’ incluem, entre outros, certos aspectos que parecem importantes neste momento: a denúncia do messianismo religioso e do caciquismo como obstáculos à liberdade individual. Foi algo que tiveste em mente?

JC: Não propriamente. Aquilo que procuro com esses cenários é trazer algo de reconhecível para contar uma história que me interessa, que pode ser a minha ou a de outra pessoa qualquer. Essas dimensões reais são fundamentais para a nossa música encontrar o seu contexto e assentar a sua pertinência. As festas religiosas no Norte de Portugal são intensas e algumas chegam a ser bastante assustadoras, o mesmo acontece em Espanha. É impressionante como as pessoas se preparam o ano inteiro para festejar com brio e aprumo em comunidade. Tenho a opinião de que essas características são mais raras do que a liberdade individual, essa está disseminada pela nossa sociedade sem que ninguém a aproveite para fazer nada de verdadeiramente livre.

JS: Por outro lado, apesar de um ambiente de catástrofe eminente que paira sobre partes do álbum, emerge a velha ideia de que, percorrido o tal ‘fadário’ de que falas em ‘Fronteira’, continuaremos a tentar trocar as voltas ao destino. Acreditas que, pelo menos psicologicamente, se vive um tal clima de liberticídio que é necessário relembrar algo tão simples quanto a necessidade (ou a possibilidade) de mudança?

JC: É necessário porque a vontade de não mudar é muito forte. Se calhar é ainda mais forte do que a vontade de mudança que muita gente partilhará por estas alturas. Principalmente quando se vive desanimado, a mudança pode parecer um abismo e o nosso país tem uma tradição sólida de resistência à mudança. De qualquer maneira, não se muda por convencimento nem contra a própria vontade. Normalmente muda-se por obrigação. Mas sempre é melhor sermos nós próprios a obrigar-nos do que vir alguém obrigar-nos a mudar. E talvez seja só essa a amplitude da nossa escolha porque a mudança parece inevitável.

JS: Um dos aspectos mais surpreendentes das canções de “Roque Popular” é o profundo enraizamento simultaneamente literário e coloquial das suas letras sem que percam acuidade para o tempo presente. É em si mesmo uma mensagem, na lírica, referir esta espécie de neutralidade ontológica que se vive nos centros urbanos ao mesmo tempo que se parte para identitários particularismos regionais? Em que mais te foste inspirar?

JC: A minha intenção inicial era poder usar palavras com sabor a terra, palavras vivas, em desuso ou inventadas, livres das amarras do cancioneiro pop. É importante que a linguagem seja também um universo e crie por si só um cenário. Interessa-me o som e a textura das palavras, tanto as ouvidas da boca de um merceeiro como as lidas nos livros do Aquilino Ribeiro. Não me interessam as regras ou etiquetas gramáticas. Atrai-me mais a palavra lembradura do que lembrança. Gosto da ideia de nos apropriarmos das palavras. Se calhar é só mais outra reacção libertária, neste caso face ao acordo ortográfico. Procurei também encontrar palavras que pudessem pelo menos enunciar cenários e texturas daquilo que é a vivência de certas paisagens portuguesas, da sua essência e do seu simbolismo que perdura através dos tempos.

JS: O álbum é permeado pelo uso da alegoria – muitas vezes acentuando diferenciais sociais e individuais – naquilo que é quase um traço comum com a linhagem da música popular de intervenção. Por alturas de “Virou”, falavas da importância de Zeca Afonso, Fausto, Vitorino ou Sérgio Godinho, tendo chegado a gravar com os dois últimos. Mas “Roque Popular” lembra-me mais a Banda do Casaco naquilo que vejo como uma resistência às convenções e ao entrincheiramento ideológico. Como equilibras necessidade de intervir e imunização ao populismo?

JC: Na verdade, cedo muito mais facilmente às tentações populistas do que à necessidade de intervir. Não é preciso voltar a afirmar que nenhuma canção vai mudar o mundo, eu quanto a isso sou tão céptico como o meu vizinho. Se existe um rasto interventivo nestes temas é porque eles têm a ver com as nossas próprias vidas e são aquilo que eu arranjei para dizer no tempo presente. Se as canções fossem sobre corações partidos e a crueldade da mulher quando nos abandona não me parece que pudessem ser lidas como intervenção sobre as relações amorosas nos tempos modernos. São só coisas que temos para dizer e em última análise respondem a intuitos individuais. Relativamente àquilo que chamas música popular de intervenção e à Banda do Casaco há diferenças muito grandes de ponto de vista em relação ao que nós procuramos fazer. Isto porque a nós só nos interessa ser a Madame Bovary, não nos pomos na posição de olhar de fora para a vida dela e descrevê-la, cantá-la ou idealizá-la. Nós confundimo-nos com ela e por isso só falamos de nós próprios.

JS: Outra coisa que pareces querer recordar é aquele absurdo histórico dos ‘brandos costumes’. Cantas em ‘Baile na Eira’: “vai nortada vai/ varre este país/ troca os ventos de brandura/ por algo que abane com isto tudo”. E não será inocente a referência aos Távoras em ‘Memorial dos Impotentes’. Aliás, tens na mesma canção um par de versos terríveis, quando dizes que, por pior que sejam as notícias, “pró bicho da era moderna/ são só mais uma história”. Porque é que achas que, tantos anos desde o 25 de Abril, persiste cá tanta passividade?

JC: Imagino que tenha sido assim a maior parte do tempo. Lendo os Autos de Gil Vicente não encontramos críticas obsoletas no que toca a características arquetípicas da nossa sociedade. A história dos brandos costumes é uma historinha de adormecer. Basta ver os primeiros anos da República para encontrar provas do contrário na História mais ou menos recente. Não sei porque somos um povo que não gosta de se chatear, que prefere que mandem nele e que aceita ter no poder gente em quem não confia. Imagino que seja por uma mistura de defeitos educativos, culturais e de competência. Opinamos sobre economia no café mas se o senhor sentado na mesa do lado diz que é economista dizemos: “pois, você é que sabe doutor, eu não percebo nada de economia”. Somos simpáticos, mas também somos incompetentes como povo. Abusam dos nossos deveres e nós não estamos habilitados para reivindicar os nossos direitos.
JS: ‘Bomba-Canção’ contém das imagens mais explosivas do disco, e parece consciente que todos os sistemas são corruptíveis e que é muitas vezes essa a génese da sua ruína. Não encontro, recentemente, mais lapidar frase sobre a impotência judicial que esta: “na parada dos culpados pela desgraça/ ia um cão de duas patas sozinho na penitência”. Não te vou pedir soluções mas pergunto-te: porque é que achas que se produz por cá tão pouca arte capaz de se dirigir a estes problemas?

JC: Acho que a questão acaba por ser a do porquê existir tão pouca arte que se dirija a qualquer problema que nos seja específico. Essa perplexidade permanece e é também a razão pela qual o Diabo na Cruz se tornou um grupo bem sucedido. Por simples falta de concorrência. Não somos os únicos nessa situação. Há muita coisa mediana a ser exultada devido à falta de termo de comparação. Nós procuramos esforçar-nos para não nos enterrarmos na mediocridade. Mas não é tarefa fácil quando não tens uma referência que te diga: olha, isto é o que tu fazes mas em bom. Existem os grandes nomes da MPP que são intocáveis, e alguns exemplos de música moderna portuguesa com originalidade, o que não existe é um discurso permanente, uma dialéctica viva das nossas linguagens musicais que avance pelas gerações fora.

JS: Desde “Virou”, o Diabo na Cruz deu cerca de 100 concertos pelo país inteiro – foram a muitos sítios que, sinceramente, tive de procurar no mapa. Em “Estrela da Serra” há uma personagem sem eira que diz que “lá consigo ouvir no meio do sarilho/ o bater do coração de Portugal”. Que conhecimento te deu sobre o país – ou melhor, como foi experimentá-lo dessa maneira – a descentralizada acção da banda?

JC: Na minha experiência em particular foi um processo contínuo em relação à vida que eu levava antes. Se calhar com o Diabo na Cruz fui mais vezes a zonas que conhecia pior como as da Beira Interior e essa frescura na memória reflectiu-se em temas do disco mas desde o fim da adolescência que tenho gosto em viajar pelas estradas nacionais, sentar-me nas tascas, dormir no carro junto às barragens, ir a romarias. O que a experiência com o Diabo trouxe, foi a oportunidade de contactar directamente com as pessoas a partir de um palco, ir percebendo melhor o que as une e as distingue em cada sítio, isso e sentir-me mais legitimado para o tipo de trabalho que me interessa.

JS: Diabo na Cruz, entre outros, veio de certa forma revitalizar os lugares e os ambientes da música popular portuguesa. Mas em ‘Pioneiros’ ainda perguntas “o qu’é feito dos pioneiros?/ dos novos pioneiros?/ desses sempre prontos a agarrar o mundo inteiro?”. Parte da missão da banda é a resistência à uniformização cultural que em Portugal se parece dar mesmo com sucessivas novas gerações?

JC: A ideia dos pioneiros é bastante americana. Julgo que se aplica ao nosso tempo como imagem, pela tal percepção de estarmos perante desafios que exigem de nós novas maneiras que serão descobertas por gente empenhada em ocupar terrenos virgens com convicção. A imagem é do Novo Mundo, apesar do Novo Mundo ser exactamente aquele que se encontra em decadência, e aquele que nos empresta os valores que assimilamos por aculturação, mesmo na decadência. Sempre me confundiu o facto de na arte em Portugal se procurar copiar resultados vindos da cultura anglo-saxónica, como em tempos se terá feito com a cultura francesa, na pintura e na literatura por exemplo, quando me parece que o essencial a apreender de outros em termos de criação é sempre o processo e não propriamente o resultado que deverá ser aquilo que distingue um artista do outro. Daí que o fado dos resultados previsíveis e papagueados na música portuguesa em particular seja um assunto aborrecido para nós, Diabo na Cruz. É algo de que somos conscientes e do qual pretendemos andar distantes, por nossa conta e risco, para o bem ou para o mal.

JS: Mas esse é um papel que ocupa por vocação ou porque mais ninguém o desempenha com a mesma concentração? Porque, como é óbvio ouvindo ‘Sete Preces’, ‘Chegaram os Santos’ ou ‘Siga a Rusga’, parte do projecto intrínseco a Diabo na Cruz é o da recuperação de aspectos eminentemente lúdicos na música popular, informado pelas danças, pelas festas juninas, por aquele celebrativo ideário pagão, etc, certo? Presumo que isso ainda norteie parte dos vossos objectivos?

JC: Sem dúvida. Nós não nos esquecemos de que isto é entretenimento e de que se não nos entretiver também a nós, então torna-se uma grande maçada, porque as ideias férteis não trazem necessariamente boas canções e de boas intenções está o Diabo cheio. Aquilo que procuramos numa parcela importante do nosso reportório é uma espécie de levantamento de motivos de festa na cultura portuguesa para aplicação na pop. E isto parte de uma certa inveja por não poder ir “atrás do trem eléctrico”, ver “a banda passar”. Por não poder gritar “nascido em Portugal! sou nascido em Portugal!” e uma carrada de outras manifestações celebratórias em canções, que podem ir do punk rock ao kuduro. Nós reivindicamos o direito à dança e se tivermos de ir resgatá-lo à romaria é para lá que dirigimos o nosso arsenal.
JS: Musicalmente, “Roque Popular” é uma exaltação que parece repudiar a hipocrisia. Quão importante é para a banda equilibrar de forma inclusiva signos da música anglo-saxónica, da pop portuguesa, do folclore etnográfico e da saloiice pimbadélica num discurso que resiste à normalização?

JC: Há uma parte de nós que se dedica a procurar articular num centro tudo aquilo dentro do que nos rodeia que possa ser trazido às canções sem que elas percam identidade. No fundo, para testar os limites desta experiência e procurar descobrir até onde é que uma música enraizada em melodias e ritmos de inspiração popular poderá ir, dado que embora para já pensemos ter encontrado um lugar nosso, suficientemente distante do dos outros grupos portugueses, não faz sentido imaginarmos estas areias movediças tão abandonadas como têm estado e parece-nos óbvio e necessário que mais e melhores venham concretizar outro tipo de ideias neste campo. É isso que, imaginamos, virá a acontecer no futuro. A inevitabilidade deste caminho está vincada na História da música popular. Não só por aí terem caminhado os grandes das canções de outras culturas, como por ter sido o caminho traçado pelos nossos escritores de canções mais marcantes, e bandas mais originais. Daí que não nos caiba na cabeça que não surjam no futuro propostas sólidas e genuínas de música de identidade portuguesa que dispare em direcções muito mais interessantes do que aquelas que o Diabo na Cruz consegue alcançar.

JS: A natureza da banda manteve-se embora se tenham alterado parte dos intervenientes desde “Virou”. A combinação de bateria e percussão (dos irmãos João e Manuel Pinheiro), por exemplo, acentua uma dimensão algo telúrica nas novas canções. Era esse o objectivo?

JC: Sim, foi um objectivo consciente e que trabalhámos detalhadamente. Para quem se interessa por música tradicional portuguesa e pelos seus instrumentos a força das percussões, dos bombos, das caixas, dos adufes, ou o quase-humor das percussões leves, ferrinhos, pandeiretas, trancanholas são altos expoentes da texturalidade e da pungência da nossa música. É verdade que o trabalho com esses instrumentos já foi muito bem defendido por projectos como o Ó Que Som Tem, o Toca a Rufar, a Brigada Victor Jara ou os Gaiteiros de Lisboa, por exemplo. De qualquer modo, queríamos tentar encontrar formas de unir essa força à do poder bruto do rock sem cairmos necessariamente em soluções à Sepultura, se calhar com uma orientação mais próxima daquela que o Paul Simon ou o David Byrne procuraram nos ritmos africanos e brasileiros, sendo que no caso das nossas percussões o imaginário é mais denso, quase medieval, pelo que ainda é um desafio encontrar uma palete de cores novas para este tipo de percussão servir um formato de canção rock e conferir uma abordagem distintiva tanto em relação à música popular como à música moderna já existentes.

JS: Com B Fachada como convidado, dadas as crescentes incompatibilidades de agenda, o núcleo da banda para as gravações fixou-se em Bernardo Barata, João Gil, João Pinheiro, Manuel Pinheiro, Sérgio Pires e Márcio Silva. Como foi pensar nos arranjos para uma formação distinta da que gravou “Virou”?

JC: No que toca ao processo de composição para este disco, o método não mudou muito em relação ao disco anterior. As músicas são compostas sem o uso de instrumentos, através de um processo de memorização mental que se baseia na ideia de oralidade e depois são comunicadas à banda como objecto final sobre o qual começamos a arquitectar um arranjo. Quanto aos arranjos, tivemos duas fases distintas. Uma primeira, bastante mais aberta, na qual cada um tomou o caminho que quis, no instrumento que quis e da qual saíram uma dúzia de canções, quatro das quais (Luzia, Estrela da Serra, Pioneiros e Santos) sobreviveram à selecção final. Numa segunda fase, trabalhámos à semelhança do primeiro disco: primeiro a secção rítmica e a estrutura das canções e finalmente toda a decoração em volta delas. Nesse aspecto mais decorativo, a saída do Fachada foi uma mudança relevante no funcionamento da banda, tivemos de trabalhar sem as segundas vozes e a braguesa até encontrarmos alguém adequado para o papel. O Márcio é um músico e cantor muito talentoso que eu conhecia dos tempos do Porto e com quem já tinha tido boas conversas sobre Fausto e Zeca Afonso e tal como o Sérgio traz a energia portuense que nos torna uma banda mais nacional, o que é muito interessante para os nossos objectivos. Os dois são também bateristas, o que, somado ao trabalho do João e do Manuel Pinheiro (que já anda na estrada connosco há um ano) nos permite pensar em recriar as festas Nicolinas em palcos mais robustos.

JS: Ouço “Roque Popular” como uma polissémica manifestação dos princípios de “Virou”, em que tudo o previamente enunciado ganha mais leituras, mais sentidos, mais massa crítica. E tudo é igualmente mais denso, mais arriscado e aprofundado. Há aqui uma noção – em partes semi-sinfónica e noutras com ambição coral – do épico, do trágico, do dramático. Mas quão importante é que se evite a caricatura e que se atinjam resultados efectivamente acessíveis?

JC: Se dermos à palavra acessível a melhor das conotações, ser acessível é fundamental. Isto é música feita por gente do povo para gente do povo. Nós não estamos nada interessados em pertencer a qualquer tipo de elite, até porque em geral as elites são estufas de medos. Não temos quaisquer pretensões à erudição e desconfiamos muito do bom gosto. A nós interessa-nos a arte pura e simples de cantar e dançar como contexto para a expressão do tipo de eloquência que se reconhece a certos gasolineiros, maquinistas ou arpoadores. O que fazemos não está acima das pessoas, está ao lado delas. E o nosso desejo é que possa ser intuitivamente entendido por elas.


Biografias dos membros de Diabo na Cruz*:
Jorge Cruz: começou a compor em 1990. Nascido em 1975, viveu até aos 10 anos na Praia da Barra, Aveiro. No ano de 1985 mudou-se para o Lobito, Angola, onde fez o primeiro ano do ciclo preparatório. Regressou a Aveiro no ano seguinte. Entre 1989 e 1991 viveu em Almada. Regressou à Praia da Barra onde viveu até 1998, altura em que se mudou para o Porto. Em 2006 passou a viver em Lisboa. Com os Superego editou “Quem Concebeu o Mundo Não Lia Romances” (1998) e “A Lenda da Irresponsabilidade do Poeta” (2001). Em 1999 editou um disco gravado em 4 pistas sob o nome de “o pequeno aquiles”. A solo editou “Sede” (2004) e “Poeira” (2007) de onde se retiraram singles que ganharam popularidade como “Adriana”, “Fado de Uma Rua Qualquer”, “Nada” ou “Anda Menina”. Em 2008 fundou os Diabo na Cruz e um ano mais tarde a banda estreou-se com “Virou!”. Produziu discos dos Golpes, dos Pontos Negros e de João Só e os Abandonados. Co-produziu discos de B Fachada e de João Coração. Participou em discos de More República Masónica, de Tiago Guillul e de Samuel Úria. Escreveu letras para discos de Movimento e Amor Electro. Em final de 2011 lançou “Barra 90”, um álbum a solo em que recuperou canções originalmente compostas na década de noventa.

Bernardo Barata: nasceu em Lisboa em 1976. Sempre quis fazer música, mas antes de se lhe poder dedicar exclusivamente estudou hotelaria e trabalhou na Suiça, Inglaterra e EUA acompanhado de um gravador de 4 pistas, guitarra e microfone na mala, gravando o que lhe vinha à cabeça. Regressado a Portugal passou por editoras de música (Warner Music e BMG) e foi júri no programa Operação Triunfo da RTP. Como músico tocou nos grupos Oioai e Real Combo Lisbonense mantendo-se hoje com Diabo na Cruz e Feromona, sempre no baixo eléctrico. Gravou os Tv Rural em 2001, dando início à actividade paralela de gravar outros artistas, tendo trabalhado com gente diversa como Tiago Guillul, António Zambujo, Os Quais, David Pires, Márcia, Diego Armés, entre outros. Vai a caminho do terceiro filho e preza a vida familiar tanto como a artística.

João Gil: nasceu em Lisboa em 1980. Descobre a música como a conhece hoje em dia aos 7 anos e aprende a tocar guitarra clássica. Mais tarde ao ouvir jazz pela primeira vez decide estudar música e faz o curso de guitarra e piano na Escola de Jazz do Hot Clube, tornando o piano na sua ferramenta de trabalho principal. Durante o curso forma com três amigos (actuais membros de You Can't Win Charlie Brown) o grupo Voodoo Economics e começa novamente a entrar pelo universo do rock. Fez parte de grupos como Tiago Bettencourt e Mantha e Julie and the Carjackers. Actualmente faz parte dos grupos Diabo na Cruz, You Can't Win Charlie Brown, Feromona, Saumik e trabalha também com artistas como Diego Armés e Joana Barra Vaz. O seu primeiro trabalho a solo surge na edição dos Novos Talentos Fnac em Junho de 2012.


João Pinheiro: nasceu em Lisboa em 1979. Envolvido com a música desde cedo, começou por tocar piano quando era ainda criança mas é como baterista que segue o seu percurso na música, para além de tocar percussões e vibrafone nas horas vagas. Já na adolescência foi um dos membros fundadores de bandas como os Pope's Bull e Tv Rural, com a qual ainda toca actualmente, e mais tarde das bandas GNU e Diabo na Cruz. Integra a actual formação do grupo de rock psicadélico dos anos 70, Ephedra. Tocou também com os Oioai, José Castro, João Coração, Trio Margens e no projecto Parque de Ricardo Jacinto e faz parte do Real Combo Lisbonense. Para além de músico é também professor de música numa escola primária. Em 2004 terminou o curso de Filosofia e estudou jazz em Lisboa, ainda que a sua principal viagem seja no rock.

Manuel Pinheiro: nasceu em Lisboa em 1982 e cresceu em Oeiras. Desde muito novo começou a tocar instrumentos e cedo passou a dividir o seu tempo livre entre os ensaios com grupos de música e a praia. Em Lisboa estudou Produção Musical e Técnicas de Som, tocou com Tv Rural e ajudou a fundar o projecto Parque. Mudou-se para Londres em 2004 onde se licenciou em Sound Arts e trabalhou como desenhador de som e compositor para teatro e dança contemporânea. Em 2011 volta a Portugal e vem juntar-se à cena rock/indie/ popular como percussionista dos Diabo na Cruz e operador de som de grupos como Real Combo Lisbonense e You Can't Win Charlie Brown.

Sérgio Pires: António Sérgio Gilberto Pires, nascido em 1980 e criado em Massarelos, Porto. Com 7 anos sonha que integra os Beach Boys, mas o que faz são interpretações da música de Rão Kyao nos jantares de familia. Em 1993, nas férias de Verão, impulsionado pelos membros dos Danças Ocultas, dá o seu primeiro concerto ao vivo tocando José Afonso, enquanto escreve rimas para os primeiros beats de hip hop a Norte. Até 1996 ocupa as tardes de Sábado em várias bandas de garagem, enquanto cresce o vício pela música negra. Em 1996, junto com o seu irmão guitarrista e os melhores amigos, descobre os palcos do país com a banda Sloppy Joe, que integra até 2006, sendo o seu principal compositor e produtor. Começa os estudos musicais em 1995 aprendendo vários instrumentos. Em 1997 faz o curso de baixo eléctrico na Escola de Jazz de Porto, e frequenta também aulas de bateria, formação musical e percussão clássica. Junta-se aos amigos de liceu em 2004 onde partilha o amor pela música jamaicana, integrando as bandas Sativa e mais tarde como baixista dos Souls of Fire, onde cumpre hoje as funções de baterista. Tem colaborado ao longo dos anos com diversos projectos, do punk à electrónica, quer ao vivo quer em estúdio, entre eles Expensive Soul, Human Chalice ou Jorge Cruz... ainda sonha vir a ser jogador da NBA, depois de se reformar dos palcos.

Márcio Silva: Márcio Filipe Marques da Silva, nascido em Paranhos, Porto. Cresceu em Águas Santas, local onde as festas, nomeadamente as competições de bombos, lhe fizeram nutrir um profundo trauma com a música estrondosamente percutida, foguetes e consequentemente trovoadas. Com ironia, aos 16 anos é-lhe apresentado a bateria, instrumento que para sua felicidade casou em pleno com a hiperactividade juvenil. Teve vários projetos que serviram fundamentalmente para ajudar algumas lojas de música a vender mais peles e baquetas. Conhece o reggae através dos amigos e em 2003 tocou com Sativa e, a partir de 2004, com Souls Of Fire. Fez parte de grupos de percussão e danças africanas, o que o leva a tocar no projecto Semente e mais tarde com Terrakota, banda onde continua. Conheceu o Diabo e o Cruz quase em simultâneo, o que o ajudou a integrar as gravações do segundo álbum de Diabo na Cruz. Hoje é mais músico que melofóbico e tem ainda a intenção e o sonho de criar uma orquestra de trovões do mundo.

*Nas fotos falta Sérgio Pires
("Roque Popular" é uma edição Murmúrio com distribuição da Mbari)