Este “Gancia” é o
primeiro álbum de um artista a solo no seio da Cafetra. E, numa repentista
tangente entre folclore onírico e pop fantasista, aquele que, num contexto de música
popular, consegue, sem renunciar ao equilíbrio entre imediatismo de
procedimentos e pungência emocional que parece ser comum ao ideário dos colegas
de editora, sugerir os mais inesperados caminhos. Diz o Éme: “acho que este disco é importante para a
Fetra porque é o primeiro longa-duração que se afasta do espectro de rock
abrasivo a que, provavelmente, mais pessoas tiveram acesso e a que imediatamente
nos associaram. Mostra também que nunca pensámos na Fetra como um colectivo com
ideias inequívocas ou consensuais mas antes como um espaço em que se acolhem e complementam
as ideias de cada um”.
O espírito colectivista
da Cafetra tem sido, aliás, um dos principais motores para os elogios
granjeados pelos seus activistas, principalmente num meio em que muitas vezes
se mistifica esse valor com propósitos sinecuristas. Um álbum de um escritor de
canções parece contrariar essa ética, mas Éme é claro: “Nas canções que faço há sempre
trabalho que não é meu – até porque é a observação dos outros o que lhe dá o
mote. Por isso, este "Gancia" é meu e de amigos meus… na gravação,
mistura, masterização, execução e tudo o que se possa imaginar. Em casa do Luís
Gravito (Cão da Morte), com a presença regular do Leo (Kimo Ameba, Go Suck a
Fuck, Rabuh Mastah, Putas Bêbadas) e do Filipe Sambado (Cochaise), com os
toques finais do B Fachada, conseguimos o som que tudo isto pedia: caseiro mas
nunca demasiado áspero ou duro. Este som, que dá a vida final aos arranjos e às
canções, parece-me uma das coisas que faz deste disco um objecto algo singular”.
Surpreendente é também o
ambiente relativamente espartano em que respiram parte destas canções. Às vezes
basta um dedilhado – ora mais narcótico, ora mais neurótico – ou um pedal para suster
a estrutura de cada tema. Também isso foi uma preocupação: “tentámos não dar às canções mais do que o
que elas pediam. Não nos interessou a grandiosidade da instrumentação ou o seu
sentido épico. Nos temas de "tom mais confessional" (pior expressão),
fazer o arranjo foi escolher apenas o essencial de um grande número de ideias e
a partir daí construir o estritamente necessário. Tudo o que estivesse a
mais ficava mal”.
É nesse quadro de inegável
sobriedade que sobressaem as características melódicas e harmónicas de Éme. Mas
também nesse particular ele partilha o mérito: “uma das coisas mais importantes do disco é a voz da Júlia. As harmonias
que a Júlia ouve são especiais e mais ninguém as podia fazer. Soam naturais
porque são mesmo. Não há truques, é mesmo assim”.
“Gancia” é a vulnerável revelação de um autor que começa a querer desvendar/(re)inventar
os mistérios do mundo a partir de um quarto e de uma audiência de meia dúzia de
amigos, mas que, pela mais pura honestidade artística, quer também tudo isso
transcender: “o que posso dizer mais é
que estou muito entusiasmado com este disco. É um disco de que gosto muito e é
também um disco que me dá muito espaço para progredir. Espero fazê-lo nos
próximos”.
Ouvir "Gancia" é ver o Éme a partir para o outro lado do espelho.