“Mel Azul”, depois
de “Pata Lenta” (2009) e “Fala Mansa” (2011), é o terceiro álbum do Norberto
para a Mbari. E, desconhecendo o futuro (acção que neste tempo de tantos
augúrios, de tão rara, parece ter-se elevado a arte), foi apenas com a sua
chegada que despontou uma ideia de trilogia jamais planeada (embora, à cautela,
aqui devêssemos utilizar a palavra tríptico). Porque de facto, numa impressão
reforçada por uma certa coerência gráfica e visual no objecto (crucialmente, mas
não só, através da reprodução nas suas capas de quadros do pintor Michael
Biberstein), não trai uma organização muito lógica esta aparentemente clássica disposição
– embora, reforçamos, de todo premeditada – que parte a princípio da solitária guitarra
acústica, dela um pouco se distancia (com a chegada de voz, tambura, piano e
demais teclados em overdub no CD do
ano passado) e em última instância a ela torna (apesar de no tema titular vir
acompanhada por Sei Miguel).
Claro que aos
olhos de quem, do Norberto, conhece apenas estes discos e está atento a um
discreto discurso que nunca sugeriu uma precedência do compositor face ao
intérprete, se revelará absurda uma introdução formal nestes termos: afinal,
não nasce tudo da guitarra? A resposta a esta questão – ou a impossibilidade de
o fazer em termos absolutos – comprova também a singularidade de um percurso
que se revela, normalmente em palco e fruto de frequentes colaborações, muito
mais abrangente do que à primeira vista parece. Pois nessas apresentações se diluem
fronteiras e hierarquias – entre géneros, egos, instrumentos e ideologias – e se
reforça a impressão de que, senão em duas frentes, a música do Norberto se faz,
pelo menos, em duas velocidades: uma, mais imediata, reactiva e instável,
manifesta-se habitualmente ao vivo, em duos e variadíssimas formações (com
bateristas, saxofonistas, pianistas, etc); outra, mais durável, reflectida e
constante, regista-se, por exemplo, neste trio de discos.
Não havendo uma
prevalência de um modelo sobre outro (mais depressa se falará na velha ideia de
dualidade expressa pela gasta expressão dos “dois lados da mesma moeda”), será
importante ter consciência da correlação de forças entre si, e, naturalmente,
de que nem isso terá grande permanência numa compreensão mais vasta desta
produção. Da mesma maneira, será inevitável falar do passado (e daquelas
sessões com Devendra Banhart, Naná Vasconcelos ou Larkin Grimm) e, no máximo,
supor que a partir de anteriores experiências algo agora se projectou. Porque
parte das canções que o Norberto reúne em “Mel Azul” nasce dessa combinação de
efeitos de acumulação e magnetismo. De uma incessante prática e de uma forma
concentrada de constituir num organismo vivo os materiais melódicos, harmónicos
ou técnicos previamente ensaiados, mas também as pessoas e os lugares. Nessa
perspectiva, este novo álbum, ficamos com essa impressão, afigura-se como a
mais elementar tradução de um tempo e um espaço específicos realizada pelo
Norberto desde a sua estreia com “Mudar de Bina” (2007).
“Mel Azul”, como
o que lhe antecedeu, tem tanto de culto quanto de oculto. Após um “Fala Mansa”
em que esteve só, Norberto regressa a interpretações (de dois temas do seu
irmão, Manuel, que todos conhecem de meia dúzia de filmes, certamente do
“Tabu”, e de que só alguns terão ouvido a obra enquanto Garcia da Selva ou REC
brutus, um dueto com Marco Franco) e colaborações (desta feita com Sei Miguel,
com quem partilha maturados interesses). Traz, por isso, música sobre música,
sobre gente e sítios. E, mais uma vez, aprofunda um fraseado independente de
constrangimentos formais que, só por prazer, assume momentâneas estruturas
canónicas. Numa arquitectura progressivamente mais leve, com um sentido de
tempo que nem se dá por ele, tecendo uma malha transparente em que se inscreve
o silêncio, o humor e hipnóticos padrões que jamais soam forçados, esta música
insólita parece-nos próxima por tão familiar nos ser já o seu criador. Mas é
muito feita de inquietações só suas. E avança por caminhos que, sem ela,
dificilmente estaríamos a trilhar. É que, ao contrário do que é comummente
promulgado, nada disto alguma vez aconteceu e dificilmente tornará a acontecer.
Norberto Lobo, guitarra
Sei Miguel, pocket
trumpet em “Mel Azul (Moebius)”
Canções por Norberto
Lobo excepto “Enzo Fought Back” (Manuel Lobo) e “Lisboa Ginásio” (Manuel Lobo
& Norberto Lobo)
Gravado, misturado e masterizado no Golden Pony Studio (Lisboa) por Eduardo Vinhas e Pedro Magalhães
Gravado, misturado e masterizado no Golden Pony Studio (Lisboa) por Eduardo Vinhas e Pedro Magalhães
Design por Mackintóxico Capa por Michael Biberstein, “Target”, 2011
Enzo Fought Back
Lúcia Lima
Vudu Xaile
Valsa da Greve Geral
Rustenburger Str
A Cor do Demo
Rua da Palma Blues
Golden Pony Blues
Lisboa Ginásio
Maga Raga
Mel Azul (Moebius)