Tem tanto por se lhe pegar
mas comecemos pela duração: esta reconstrução/recriação/o-que-quiserem do
primeiro álbum de Sérgio Godinho, gravado em França em 1971 e editado em
Portugal há 40 anos, realizada agora por B Fachada, Francisca Cortesão e João
Correia a convite do seu autor (e “ter a
sua aprovação é bom demais para pôr em palavras”, diz o João) soma cerca de
15 minutos à original. O que quererá dizer muitas coisas mas, crucialmente, prova
que na sua matéria poéticomusical mais básica mas nem por isso menos canónica
encontrou o trio uma invulgar plasticidade e aquelas invejáveis células que,
mais do que reprodução, permitem uma expansão.
Não será propriamente de
estranhar. Primeiro, porque tendo crescido com a música de Sérgio Godinho já
nos anos 80, nenhum deles ignora esse percurso que abraçou o ecletismo sem
jamais comprometer um estilo francamente pessoal; segundo, porque lhe
identificam um impulso de renovação e diálogo intergeracional ao longo da
carreira que desperta a própria chama da transformação; terceiro, porque no
espírito de “Os Sobreviventes” encontram, já mais do que uma ânsia, a própria
promessa da liberdade (e a capacidade de a questionar) com que nasceram; quarto,
porque lhes seria impossível desonrar tudo isso ao se coibirem de imprimir
nestas canções algumas das marcas da agenda criativa contemporânea de cada um. A
isto alude Fachada quando explica: “descobrir
a canção abstracta a partir da versão de 71 e reconstrui-la na nossa língua foi
o estudo mais eficaz que podíamos fazer com o património de Godinho. Fazê-lo de
maneira a que o próprio reconheça não só a música dele mas também a nossa faz
tudo valer a pena”.
Somando a biografia
artística de B Fachada, Francisca Cortesão (líder dos Minta & the Trout
Brook, que ainda há pouco lançaram “Olympia”, e colaboradora do próprio Godinho
em “Mútuo Consentimento”) e João Correia (cantor e guitarrista dos Julie &
The Carjackers de “Parasol”, mas também parceiro de Frankie Chavez, Márcia ou
Walter Benjamin, por exemplo) ter-se-á uma ideia do campo de possibilidades que
logo à sua frente se estendeu. Fundamentalmente, talvez por serem já tão
experientes estes três músicos que ainda não chegaram aos trintas, aquela de experimentarem
um som de banda num contexto habitualmente – em discos de versões – mais
abrangente e variado (diz a Francisca: “a
ideia de ter o mesmo grupo de músicos a fazer versões de um disco inteiro
pareceu-me maravilhosa”).
Claro que a Francisca e o
João são companheiros na aventura They’re Heading West, que partiu mesmo para o
oeste norte-americano na altura destas sessões, conforme recorda a cantora: “eu e o Joca tínhamos voo marcado para
Vancouver, onde começava a nossa digressão. Tanto que o Fachada ainda acabou
algumas coisas sozinho... Ou seja, fomos seguindo os primeiros instintos e
fazendo o que nos soava bem. Também por isso só canto voz principal na ‘Paula’”).
Juntos, possuem uma afinidade rítmica tão intuitiva que por vezes sugerem estar
a tocar o mesmo instrumento – até as síncopes e os contrapontos parecem feitos
pela mesma pessoa. Mas são também, enfaticamente neste contexto, compositores e
vocalistas de direito próprio que tornam cada nota essencial e cada silêncio
não menos fulcral na sóbria gestão do espaço que da sua acção discorre. Fachada,
com uma visão particularmente coral e contramelódica dos arranjos, estimula
mais ainda esta leitura colectiva. E que a sua voz e a de Francisca se
harmonizam elegantemente já se sabia desde ‘Primeiro Dia’, o tema do álbum “B Fachada
é Pra Meninos” em que cantam juntos.
Sérgio Godinho, que já
subiu ao palco com Fachada e Francisca no Super Bock em Stock de 2010, teve
aqui um papel ideológico: foi ele que os desafiou a pegar na sua herança.
Francisca sintetiza-a assim: “Tenho um respeito
sem fim pelos que o gravaram no exílio. Que quem ouça a nossa versão aproveite
para ir ouvir o original e também o “Margem de Certa Maneira”, do Zé Mário, e
os LPs do Zeca da mesma altura. Temos muito a aprender com estes discos”.
Será inevitável – e um dos méritos desta revisão, embora outro seja o de acentuar
características sensuais em temas de intervenção – aplicar palavras escritas em
tempo de ditadura àquele de regime democrático em que vivemos. Mas mais
importante será sempre sobreviver.