sexta-feira, 9 de novembro de 2012

B Fachada, Minta e João Correia "Os Sobreviventes" (Texto de Apresentação)



Tem tanto por se lhe pegar mas comecemos pela duração: esta reconstrução/recriação/o-que-quiserem do primeiro álbum de Sérgio Godinho, gravado em França em 1971 e editado em Portugal há 40 anos, realizada agora por B Fachada, Francisca Cortesão e João Correia a convite do seu autor (e “ter a sua aprovação é bom demais para pôr em palavras”, diz o João) soma cerca de 15 minutos à original. O que quererá dizer muitas coisas mas, crucialmente, prova que na sua matéria poéticomusical mais básica mas nem por isso menos canónica encontrou o trio uma invulgar plasticidade e aquelas invejáveis células que, mais do que reprodução, permitem uma expansão. 

Não será propriamente de estranhar. Primeiro, porque tendo crescido com a música de Sérgio Godinho já nos anos 80, nenhum deles ignora esse percurso que abraçou o ecletismo sem jamais comprometer um estilo francamente pessoal; segundo, porque lhe identificam um impulso de renovação e diálogo intergeracional ao longo da carreira que desperta a própria chama da transformação; terceiro, porque no espírito de “Os Sobreviventes” encontram, já mais do que uma ânsia, a própria promessa da liberdade (e a capacidade de a questionar) com que nasceram; quarto, porque lhes seria impossível desonrar tudo isso ao se coibirem de imprimir nestas canções algumas das marcas da agenda criativa contemporânea de cada um. A isto alude Fachada quando explica: “descobrir a canção abstracta a partir da versão de 71 e reconstrui-la na nossa língua foi o estudo mais eficaz que podíamos fazer com o património de Godinho. Fazê-lo de maneira a que o próprio reconheça não só a música dele mas também a nossa faz tudo valer a pena”.

Somando a biografia artística de B Fachada, Francisca Cortesão (líder dos Minta & the Trout Brook, que ainda há pouco lançaram “Olympia”, e colaboradora do próprio Godinho em “Mútuo Consentimento”) e João Correia (cantor e guitarrista dos Julie & The Carjackers de “Parasol”, mas também parceiro de Frankie Chavez, Márcia ou Walter Benjamin, por exemplo) ter-se-á uma ideia do campo de possibilidades que logo à sua frente se estendeu. Fundamentalmente, talvez por serem já tão experientes estes três músicos que ainda não chegaram aos trintas, aquela de experimentarem um som de banda num contexto habitualmente – em discos de versões – mais abrangente e variado (diz a Francisca: “a ideia de ter o mesmo grupo de músicos a fazer versões de um disco inteiro pareceu-me maravilhosa”).

Claro que a Francisca e o João são companheiros na aventura They’re Heading West, que partiu mesmo para o oeste norte-americano na altura destas sessões, conforme recorda a cantora: “eu e o Joca tínhamos voo marcado para Vancouver, onde começava a nossa digressão. Tanto que o Fachada ainda acabou algumas coisas sozinho... Ou seja, fomos seguindo os primeiros instintos e fazendo o que nos soava bem. Também por isso só canto voz principal na ‘Paula’”). Juntos, possuem uma afinidade rítmica tão intuitiva que por vezes sugerem estar a tocar o mesmo instrumento – até as síncopes e os contrapontos parecem feitos pela mesma pessoa. Mas são também, enfaticamente neste contexto, compositores e vocalistas de direito próprio que tornam cada nota essencial e cada silêncio não menos fulcral na sóbria gestão do espaço que da sua acção discorre. Fachada, com uma visão particularmente coral e contramelódica dos arranjos, estimula mais ainda esta leitura colectiva. E que a sua voz e a de Francisca se harmonizam elegantemente já se sabia desde ‘Primeiro Dia’, o tema do álbum “B Fachada é Pra Meninos” em que cantam juntos.

Sérgio Godinho, que já subiu ao palco com Fachada e Francisca no Super Bock em Stock de 2010, teve aqui um papel ideológico: foi ele que os desafiou a pegar na sua herança. Francisca sintetiza-a assim: “Tenho um respeito sem fim pelos que o gravaram no exílio. Que quem ouça a nossa versão aproveite para ir ouvir o original e também o “Margem de Certa Maneira”, do Zé Mário, e os LPs do Zeca da mesma altura. Temos muito a aprender com estes discos”. Será inevitável – e um dos méritos desta revisão, embora outro seja o de acentuar características sensuais em temas de intervenção – aplicar palavras escritas em tempo de ditadura àquele de regime democrático em que vivemos. Mas mais importante será sempre sobreviver.