"Iruman"
Akira Sakata: saxofone alto, clarinete, voz, sinos e
chocalhos
Giovanni Di Domenico: piano
Seijaku No
Ichimai - A Piece of Silence/ Kousa No Odori - Yellow Sand Blowing from China/
Suiren No Saku Huruike – Lotus Blossom in an Old Pond /Yamadera Ni Kikoyuru Koe
– Voice from a Temple in the Deep Mountain /Moe I – Bud I/ Tanbo Ni Mizu Ga
Hairu – Water Coming Into Rice Field in the Spring/ Sukiyazukuri No Tatazumai –
The Peaceful Atmosphere of a Wood Sukiya-style Temple/ Hachi To Ohisama – The
Bee and the Sunshine/ Papiruma/ Moe II – Bud II
Comissionado pela Mbari, este
“Iruman” – primeiro disco de Sakata em duo com um pianista num percurso de mais
de 40 anos – parece assentar em paradoxos. O seu título, por exemplo, e não
obstante o ímpeto desconstrutivista que por aqui se pressente, sugere irmandade
ou, até, redenção. Afinal, iruman é
uma palavra japonesa de origem portuguesa, derivada do étimo “irmão”, utilizada
por jesuítas chegados ao Japão em meados do século XVI. Mas o significado do
termo só se capta se lhe descontarmos o implícito missionarismo. Aliás,
dir-se-ia que o que esta música evoca não remonta a essa longínqua colisão
geográfica e cultural, mas a algo que lhe é até anterior.
Mas Sakata sempre questionou
estereótipos. A sua ação performativa reveste-se de um ritualismo ora
sardónico, ora enternecedor, comungante de uma inacessível verdade
eminentemente comunicável. Talvez por isso, mesmo integrado num circuito onde
há quem tenha a perfeita noção daquilo que a improvisação livre deva ser,
permaneça imune ao sectarismo e assuma contornos catárticos. Em “Iruman” nem se
supõe ser outro o motor da ação, que esse carácter premonitório despertado pelo
cruzamento com Giovanni Di Domenico. Gravado a 5 de novembro de 2012 no estúdio
GOK Sound, em Tóquio, este material não sofreu outra qualquer predeterminação.
Imbuídos de um misticismo que se
julgaria anacrónico, não estivesse o conceito mais instalado na mente de quem
os ouve, estes temas fluem com naturalidade numa dinâmica que poderá ter algo
em comum com a da música de câmara, embora enfatize aspetos aí negligenciados.
Há ainda provocadoras assimetrias, elípticos acordes ao piano, delicadezas ao
clarinete, adstringentes exalações ao saxofone alto e uma envolvência
praticamente cénica que transforma o duo em comunidade, dado a enigmáticos e
imemoriais cultos. Esta não é uma música de irrisão destinada a lancetar
convenções, apesar de Sakata e Di Domenico a praticarem esplendidamente. Mas
também não é especificamente servil.
Entregue a tantos matizes, nestas
estruturas de geração espontânea, talvez o que mais surpreenda na sua
organização seja a coesão. Vorticosas declamações e primevas litanias servem
uma lógica gregária, em que os depurados instintos dos improvisadores
equilibram metodicamente utopias individuais e dramas coletivos. Certo fraseado
de Di Domenico aparenta reunir inúmeras fases do jazz ao piano, outras escolhas
suas despontariam sem artifício numa peça pós-serialista. Sakata ruma de igual
modo a um ponto de síntese que se diria habitado por muitas mais vozes do que a
sua, numa tática tão tentada pela transcendência quão marcada pelas minudências
de quem investiga sistemas microscópicos, isto é, os que não se veem a olho nu.
Nessa perspetiva, “Iruman” chama a
si uma perplexidade de que a música improvisada está normalmente isenta, para
não dizer que lhe é ostensivamente contrária: a que pressupõe que homem algum é
senhor absoluto daquilo que faz nem muito menos do tempo em que vive. Ou que
isso não é o mais importante de entre tudo o que pode alcançar. Sakata e Di
Domenico têm cerca de 30 anos entre si, mas, na tradução do que há de sagrado e
profano na criação, são como irmãos.
Akira Sakata
Akira Sakata,
saxofonista, nasceu em Kure a 21 de Fevereiro de 1945, a poucos meses
dos raides aéreos que destruíram o arsenal naval japonês estacionado no porto
da cidade e a tempo de pressentir o vulto do bombardeiro norte-americano Enola
Gay rumo a Hiroshima. Trata-se de uma região perpetuamente em luto, cuja mágoa
incicatrizável concorreu com o esforço de reconstrução, espantando, iludindo e alienando
uma geração que cresceu a desprezar cultos nacionalistas. Para muitos, então, apenas
combatendo o conformismo cultural se poderia conciliar o estranho, o belo, o
grotesco e o misterioso da vida, e conferir algum sentido à irracionalidade que
a bomba atómica tão bem representou.
O jazz – popular no Japão desde os anos 20 e com importância
revalidada pela ocupação americana – revelou-se um instrumento essencial no
desenvolvimento do espírito crítico, na constituição de comportamentos
desviantes, mas também uma maneira de tornar visível a dor e o sofrimento, de
dialogar despudoradamente com o caos, de regressar ao mundo. O trio de Yosuke
Yamashita, Akira Sakata e Tateo Moriyama simboliza algo desse impulso, trazendo
até ao ocidente – em festivais como os de Moers, Berlim, Montreux ou Newport e
em discos como “Clay” ou “Chiasma”, editados por ENJA e MPS em meados de 70 –
um free jazz que se considerava resultado de uma experiência evolutivamente separada
da nossa. Outros LPs desse período – como “Distant Thunder”, gravado ao vivo
pelo trio com Manfred Schoof – sublinham um discurso acima de tudo empenhado em
escapar a qualquer forma de coação.
De novo no Japão, Sakata estendeu a outras áreas esse
libertário postulado. As suas gravações de início dos anos 80, do teatral “20
Personalities” aos idiomáticos ensaios com o grupo Wha-Ha-Ha (não por acaso lançado
na editora Better Days, catálogo âncora para o mais distinto e futurista
synth-pop, e, na Europa, em parte licenciado à Recommended, de Chris Cutler),
decorriam em paralelo com uma carreira internacional progressivamente conotada
com a mais intransigente e globalizada música de fusão. Em 1981 atua em Berlim
ao lado de Lounge Lizards, James Blood Ulmer, Defunkt ou Material, de Bill
Laswell, o baixista norte-americano que, em 1986, o convidaria para “The Noise
of Trouble”, sessão com Herbie Hancock, Sonny Sharrock, Peter Brötzmann e
Ronald Shannon Jackson. Laswell estaria presente noutros momentos fundamentais
na discografia de Sakata: produzindo primeiro, em 1991, “Silent Plankton” e
“Autonomous Zone” (com Ginger Baker, Foday Musa Suso, Anton Fier ou Brötzmann)
e, mais tarde, em 1996, o projeto de folclore pan-asiático Flying Mijinko Band
(Fier, Suso, Nicky Skopelitis, etc), que, patrocinado pela Japan Foundation,
viajou por Uzbequistão, Mongólia, China.
Desde 2005, desta feita através de inúmeras colaborações com Jim
O’Rourke, Chris Corsano e Darin Gray, o percurso de Sakata ganhou novamente
visibilidade fora do Japão. Intransigentes registos como
“Hagyou” (com Yoshimi, dos Boredoms), “Friendly Pants”, “And That’s the Story
of Jazz” e “Sora Wo Tobu!” (que conta com Yosuke Yamashita), a par de digressões na Europa e
América do Norte, levaram o seu nome a novas gerações. Nos últimos anos têm-se
ainda estreitado as relações entre a sua atividade artística e o seu trabalho
enquanto biólogo marinho, professor convidado na Universidade de Tóquio, como
no DVD “Mijinko – A Silent Microcosm”, dedicado à pulga-de-água.
Giovanni Di Domenico
Giovanni Di Domenico, pianista,
nasceu em Roma a 20 de Julho de 1977, período significativamente turbulento em
termos sociopolíticos, de hostil polarização e ostensivo para-militarismo,
amotinado confronto ideológico e sanguinários atentados, para a posteridade
incluído na caracterização dos ‘Anos de Chumbo’. Nesse verão de particular
acerbidade, brotou por entre a paranoia conspirativa o chamado ‘Movimento de
1977’, não-alinhado, extraparlamentar e, em certa medida, pacífico, que
denunciava tendências iníquas, discriminatórias, autoritárias e repressivas no
Estado italiano, reclamando igualdade de oportunidades para as minorias e um
incremento nos direitos civis. Coincidente com a liberalização do mercado de
produtos audiovisuais, terminado o monopólio da RAI, esse é também o tempo das
rádios piratas, resultando numa libertadora fragmentação da cultura juvenil,
exponencialmente representada pelo punk.
Pode dizer-se que Giovanni,
autodidata até aos 24 anos, herdou – filosófica, política e artisticamente – o
mais afirmativo e benigno dessa época, diversificando já a sua ação no quadro
de uma Europa unificada, promovendo improváveis coligações, explorando as mais
variadas geografias, manobrando confortavelmente em franjas estéticas,
comprometendo-se com a atuação ao vivo no que esta possui de mais participativo
e engajador. Mas, curiosamente, o caminho que até aí o conduziu teve origem num
inesperado desvio: acompanhando sucessivas colocações de seu pai, engenheiro
civil, viveu a primeira década de vida em África – até aos cinco anos na Líbia,
dos cinco aos oito nos Camarões e, depois, até aos dez, na Argélia. O seu
longínquo país natal não era tanto o palco de ações à mão armada quanto o da
ópera, cujas árias, para exercitar a língua e entreter a família, aprendia com
as irmãs. Essa singular condição de expatriado teve um tremendo impacto na sua
formação – recorda as recitações dos muezzin, os sons de exóticos instrumentos
nas feiras, a expressão ritualista da música nas ruas de Yaoundé ou as melodias
que a sua ama camaronesa cantava. Talvez por isso se insira, hoje, tão
naturalmente no coletivo Trance Mission, do marroquino Hassan El Gadiri.
Quando finalmente chega ao
Conservatório – cursou ‘piano jazz’ – aprofunda uma técnica enciclopedicamente
(in)formada; rítmica, harmónica e timbricamente marcada por diferentes
tradições não-ocidentais e igualmente sensível aos “Préludes” de Debussy, às
“Sequenza” de Luciano Berio, à ‘ambi-ideação’ ouvida nos discos de Borah
Bergman para a Soul Note, à polissémica densidade de Cecil Taylor, à enodoada
transparência de Paul Bley e, claro está, às mais radicais manifestações procedentes
dos subterrâneos da música popular, mas invariavelmente dedicada à construção
de uma prática original. É uma distinção – dir-se-ia geracional – que partilha
com muitos dos músicos com que se tem cruzado em anos recentes, entre os quais
se destacam Nate Wooley, Chris Corsano, Arve Henriksen, Jim O’Rourke, Alexandra
Grimal, Tetuzi Akiyama, João Lobo ou Toshimaru Nakamura. Fundou a sua própria editora, a Silent Water,
testemunho para uma eclética e ocasionalmente inclassificável produção. Vive em
Bruxelas.