sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Akira Sakata & Giovanni Di Domenico "Iruman" (Lançamento a 10 de janeiro)






"Iruman"
Akira Sakata: saxofone alto, clarinete, voz, sinos e chocalhos
Giovanni Di Domenico: piano

Seijaku No Ichimai - A Piece of Silence/ Kousa No Odori - Yellow Sand Blowing from China/ Suiren No Saku Huruike – Lotus Blossom in an Old Pond /Yamadera Ni Kikoyuru Koe – Voice from a Temple in the Deep Mountain /Moe I – Bud I/ Tanbo Ni Mizu Ga Hairu – Water Coming Into Rice Field in the Spring/ Sukiyazukuri No Tatazumai – The Peaceful Atmosphere of a Wood Sukiya-style Temple/ Hachi To Ohisama – The Bee and the Sunshine/ Papiruma/ Moe II – Bud II

Comissionado pela Mbari, este “Iruman” – primeiro disco de Sakata em duo com um pianista num percurso de mais de 40 anos – parece assentar em paradoxos. O seu título, por exemplo, e não obstante o ímpeto desconstrutivista que por aqui se pressente, sugere irmandade ou, até, redenção. Afinal, iruman é uma palavra japonesa de origem portuguesa, derivada do étimo “irmão”, utilizada por jesuítas chegados ao Japão em meados do século XVI. Mas o significado do termo só se capta se lhe descontarmos o implícito missionarismo. Aliás, dir-se-ia que o que esta música evoca não remonta a essa longínqua colisão geográfica e cultural, mas a algo que lhe é até anterior.

Mas Sakata sempre questionou estereótipos. A sua ação performativa reveste-se de um ritualismo ora sardónico, ora enternecedor, comungante de uma inacessível verdade eminentemente comunicável. Talvez por isso, mesmo integrado num circuito onde há quem tenha a perfeita noção daquilo que a improvisação livre deva ser, permaneça imune ao sectarismo e assuma contornos catárticos. Em “Iruman” nem se supõe ser outro o motor da ação, que esse carácter premonitório despertado pelo cruzamento com Giovanni Di Domenico. Gravado a 5 de novembro de 2012 no estúdio GOK Sound, em Tóquio, este material não sofreu outra qualquer predeterminação.

Imbuídos de um misticismo que se julgaria anacrónico, não estivesse o conceito mais instalado na mente de quem os ouve, estes temas fluem com naturalidade numa dinâmica que poderá ter algo em comum com a da música de câmara, embora enfatize aspetos aí negligenciados. Há ainda provocadoras assimetrias, elípticos acordes ao piano, delicadezas ao clarinete, adstringentes exalações ao saxofone alto e uma envolvência praticamente cénica que transforma o duo em comunidade, dado a enigmáticos e imemoriais cultos. Esta não é uma música de irrisão destinada a lancetar convenções, apesar de Sakata e Di Domenico a praticarem esplendidamente. Mas também não é especificamente servil.

Entregue a tantos matizes, nestas estruturas de geração espontânea, talvez o que mais surpreenda na sua organização seja a coesão. Vorticosas declamações e primevas litanias servem uma lógica gregária, em que os depurados instintos dos improvisadores equilibram metodicamente utopias individuais e dramas coletivos. Certo fraseado de Di Domenico aparenta reunir inúmeras fases do jazz ao piano, outras escolhas suas despontariam sem artifício numa peça pós-serialista. Sakata ruma de igual modo a um ponto de síntese que se diria habitado por muitas mais vozes do que a sua, numa tática tão tentada pela transcendência quão marcada pelas minudências de quem investiga sistemas microscópicos, isto é, os que não se veem a olho nu.

Nessa perspetiva, “Iruman” chama a si uma perplexidade de que a música improvisada está normalmente isenta, para não dizer que lhe é ostensivamente contrária: a que pressupõe que homem algum é senhor absoluto daquilo que faz nem muito menos do tempo em que vive. Ou que isso não é o mais importante de entre tudo o que pode alcançar. Sakata e Di Domenico têm cerca de 30 anos entre si, mas, na tradução do que há de sagrado e profano na criação, são como irmãos.


Akira Sakata
Akira Sakata, saxofonista, nasceu em Kure a 21 de Fevereiro de 1945, a poucos meses dos raides aéreos que destruíram o arsenal naval japonês estacionado no porto da cidade e a tempo de pressentir o vulto do bombardeiro norte-americano Enola Gay rumo a Hiroshima. Trata-se de uma região perpetuamente em luto, cuja mágoa incicatrizável concorreu com o esforço de reconstrução, espantando, iludindo e alienando uma geração que cresceu a desprezar cultos nacionalistas. Para muitos, então, apenas combatendo o conformismo cultural se poderia conciliar o estranho, o belo, o grotesco e o misterioso da vida, e conferir algum sentido à irracionalidade que a bomba atómica tão bem representou.

O jazz – popular no Japão desde os anos 20 e com importância revalidada pela ocupação americana – revelou-se um instrumento essencial no desenvolvimento do espírito crítico, na constituição de comportamentos desviantes, mas também uma maneira de tornar visível a dor e o sofrimento, de dialogar despudoradamente com o caos, de regressar ao mundo. O trio de Yosuke Yamashita, Akira Sakata e Tateo Moriyama simboliza algo desse impulso, trazendo até ao ocidente – em festivais como os de Moers, Berlim, Montreux ou Newport e em discos como “Clay” ou “Chiasma”, editados por ENJA e MPS em meados de 70 – um free jazz que se considerava resultado de uma experiência evolutivamente separada da nossa. Outros LPs desse período – como “Distant Thunder”, gravado ao vivo pelo trio com Manfred Schoof – sublinham um discurso acima de tudo empenhado em escapar a qualquer forma de coação.

De novo no Japão, Sakata estendeu a outras áreas esse libertário postulado. As suas gravações de início dos anos 80, do teatral “20 Personalities” aos idiomáticos ensaios com o grupo Wha-Ha-Ha (não por acaso lançado na editora Better Days, catálogo âncora para o mais distinto e futurista synth-pop, e, na Europa, em parte licenciado à Recommended, de Chris Cutler), decorriam em paralelo com uma carreira internacional progressivamente conotada com a mais intransigente e globalizada música de fusão. Em 1981 atua em Berlim ao lado de Lounge Lizards, James Blood Ulmer, Defunkt ou Material, de Bill Laswell, o baixista norte-americano que, em 1986, o convidaria para “The Noise of Trouble”, sessão com Herbie Hancock, Sonny Sharrock, Peter Brötzmann e Ronald Shannon Jackson. Laswell estaria presente noutros momentos fundamentais na discografia de Sakata: produzindo primeiro, em 1991, “Silent Plankton” e “Autonomous Zone” (com Ginger Baker, Foday Musa Suso, Anton Fier ou Brötzmann) e, mais tarde, em 1996, o projeto de folclore pan-asiático Flying Mijinko Band (Fier, Suso, Nicky Skopelitis, etc), que, patrocinado pela Japan Foundation, viajou por Uzbequistão, Mongólia, China.

Desde 2005, desta feita através de inúmeras colaborações com Jim O’Rourke, Chris Corsano e Darin Gray, o percurso de Sakata ganhou novamente visibilidade fora do Japão. Intransigentes registos como “Hagyou” (com Yoshimi, dos Boredoms), “Friendly Pants”, “And That’s the Story of Jazz” e “Sora Wo Tobu!” (que conta com Yosuke Yamashita), a par de digressões na Europa e América do Norte, levaram o seu nome a novas gerações. Nos últimos anos têm-se ainda estreitado as relações entre a sua atividade artística e o seu trabalho enquanto biólogo marinho, professor convidado na Universidade de Tóquio, como no DVD “Mijinko – A Silent Microcosm”, dedicado à pulga-de-água.

Giovanni Di Domenico
Giovanni Di Domenico, pianista, nasceu em Roma a 20 de Julho de 1977, período significativamente turbulento em termos sociopolíticos, de hostil polarização e ostensivo para-militarismo, amotinado confronto ideológico e sanguinários atentados, para a posteridade incluído na caracterização dos ‘Anos de Chumbo’. Nesse verão de particular acerbidade, brotou por entre a paranoia conspirativa o chamado ‘Movimento de 1977’, não-alinhado, extraparlamentar e, em certa medida, pacífico, que denunciava tendências iníquas, discriminatórias, autoritárias e repressivas no Estado italiano, reclamando igualdade de oportunidades para as minorias e um incremento nos direitos civis. Coincidente com a liberalização do mercado de produtos audiovisuais, terminado o monopólio da RAI, esse é também o tempo das rádios piratas, resultando numa libertadora fragmentação da cultura juvenil, exponencialmente representada pelo punk.

Pode dizer-se que Giovanni, autodidata até aos 24 anos, herdou – filosófica, política e artisticamente – o mais afirmativo e benigno dessa época, diversificando já a sua ação no quadro de uma Europa unificada, promovendo improváveis coligações, explorando as mais variadas geografias, manobrando confortavelmente em franjas estéticas, comprometendo-se com a atuação ao vivo no que esta possui de mais participativo e engajador. Mas, curiosamente, o caminho que até aí o conduziu teve origem num inesperado desvio: acompanhando sucessivas colocações de seu pai, engenheiro civil, viveu a primeira década de vida em África – até aos cinco anos na Líbia, dos cinco aos oito nos Camarões e, depois, até aos dez, na Argélia. O seu longínquo país natal não era tanto o palco de ações à mão armada quanto o da ópera, cujas árias, para exercitar a língua e entreter a família, aprendia com as irmãs. Essa singular condição de expatriado teve um tremendo impacto na sua formação – recorda as recitações dos muezzin, os sons de exóticos instrumentos nas feiras, a expressão ritualista da música nas ruas de Yaoundé ou as melodias que a sua ama camaronesa cantava. Talvez por isso se insira, hoje, tão naturalmente no coletivo Trance Mission, do marroquino Hassan El Gadiri.

Quando finalmente chega ao Conservatório – cursou ‘piano jazz’ – aprofunda uma técnica enciclopedicamente (in)formada; rítmica, harmónica e timbricamente marcada por diferentes tradições não-ocidentais e igualmente sensível aos “Préludes” de Debussy, às “Sequenza” de Luciano Berio, à ‘ambi-ideação’ ouvida nos discos de Borah Bergman para a Soul Note, à polissémica densidade de Cecil Taylor, à enodoada transparência de Paul Bley e, claro está, às mais radicais manifestações procedentes dos subterrâneos da música popular, mas invariavelmente dedicada à construção de uma prática original. É uma distinção – dir-se-ia geracional – que partilha com muitos dos músicos com que se tem cruzado em anos recentes, entre os quais se destacam Nate Wooley, Chris Corsano, Arve Henriksen, Jim O’Rourke, Alexandra Grimal, Tetuzi Akiyama, João Lobo ou Toshimaru Nakamura. Fundou a sua própria editora, a Silent Water, testemunho para uma eclética e ocasionalmente inclassificável produção. Vive em Bruxelas.


all songs by akira sakata & giovanni di domenico; titles and “moe” kanji by akira sakata; recorded at gok sound (tokyo) by yoshiaki kondo, november 2012; mixed and mastered at golden pony studio (lisbon) by eduardo vinhas, march 2013; cover illustration by okyo maruyama (1733-1795); design by tomás cunha ferreira; produced by joão santos