Naquilo que se normalmente se
apelidava de Música Moderna Portuguesa, o impacto da primeira banda de
Tó Trips – os Amen Sacristi – foi conjuntural. Frequentadores dos
concursos do Rock Rendez-Vous
lembrar-se-ão deles. E colecionadores de rock nacional terão algumas das K7s ou
compilações nas quais figuravam entre 1986 e 1989. Tó recorda-os sob a influência
de uns Chameleons, embora na
altura surgissem associados aos nomes de Big Black (de Steve Albini) ou Glenn Branca. A fechar a década
foi convidado por Jorge Ferraz para ingressar nos incendiários Santa Maria Gasolina em Teu Ventre, com os quais gravou um
EP. Se o combustível desses terminou, Tó não dava sinais de abrandar, fundando
os Lulu Blind. O arranque da banda é apoteótico, culminando em 1993 na primeira
parte do concerto dos Sonic Youth,
no Campo Pequeno, e, pouco depois, na abertura para os Manic Street Preachers, no
Pavilhão Carlos Lopes. Em 1994 editam “Dread”. Mas em Portugal, ao contrário do
que se passou um pouco por todo o mundo, o underground
não se tornou no mainstream. E, como
a de tantos outros (que na altura enchiam o Johnny Guitar), a história dos Lulu Blind ao longo da
década de 90 acaba por refletir a desagregação no interesse do público pela
música portuguesa menos católica.
Não seria de estranhar que se
impusesse uma mudança de ares que se fizesse equivaler a novas vivências e,
claro, a uma entrada num novo milénio prenhe em significados e simbolismo. Dir-se-ia que o
aparecimento do duo com Pedro Gonçalves – os Dead Combo – não tentou
satisfazer outra ambição. Fiel ao tempo que a viu nascer, a curiosidade cultural
que o grupo desde cedo revelou teve o paradoxal efeito de concentrar públicos. E
tudo o que se passou entretanto poderá ter contribuído para que Tó, de uma só
vez, pensasse em escancarar portas que permaneciam teimosamente fechadas. Fê-lo
em 2009 com o terno e intimista “Guitarra 66”, o
seu primeiro CD a solo, num momento em que a música portuguesa se tornava novamente
mais livre e isenta de complexos. Só que neste caso materializava-se também algo que
se impôs, ao fim de mais de duas décadas, como uma necessidade artística: projetar
a visão que se quer própria ao indivíduo.
Tó resumia-o de forma geográfica: “um disco mediterrânico e com raízes portuguesas. Um disco ibérico e virado para o Atlântico. Cruza viagens pelo deserto africano, evoca bairros latinos nos Estados Unidos, imagina mares do sul”. Paralelamente a isso – e à construção de um público internacional através de uns Dead Combo de referências progressivamente mais arejadas – surgiram novas ideias: houve “Vi-os Desaparecer na Noite”, com Tiago Gomes, uma banda sonora em guitarra elétrica para leituras de “On The Road”, de Jack Kerouac; e deu-se a criação do iconoclasta Timespine, o trio com Adriana Sá e John Klima. Ou seja, não parou de se expandir o léxico de Tó Trips nem desapareceram do seu caminho os estímulos exteriores que tanto o alimentam.
Tó resumia-o de forma geográfica: “um disco mediterrânico e com raízes portuguesas. Um disco ibérico e virado para o Atlântico. Cruza viagens pelo deserto africano, evoca bairros latinos nos Estados Unidos, imagina mares do sul”. Paralelamente a isso – e à construção de um público internacional através de uns Dead Combo de referências progressivamente mais arejadas – surgiram novas ideias: houve “Vi-os Desaparecer na Noite”, com Tiago Gomes, uma banda sonora em guitarra elétrica para leituras de “On The Road”, de Jack Kerouac; e deu-se a criação do iconoclasta Timespine, o trio com Adriana Sá e John Klima. Ou seja, não parou de se expandir o léxico de Tó Trips nem desapareceram do seu caminho os estímulos exteriores que tanto o alimentam.
Agora chega “Guitarra Makaka – Danças a um Deus Desconhecido”. E mais uma vez não
se deixa Tó prender a fórmulas, não obstante possuir, à guitarra, um estilo particularmente
distinto. Isto é, o aparecimento de um novo disco a solo seu deve-se, antes de mais,
à necessidade de documentar o desenvolvimento e exploração de uma nova
linguagem. Mais concretamente à guitarra Resonator, com os seus
cones metálicos a ampliar de modo natural o som e raízes associadas a
ícones como Tampa Red ou Bukka White. Não que Tó finja aqui ser quem não é - aliás, mais longe do blues do delta
do Mississippi não podia estar. Afinal, o seu interesse na tradição será apenas
por aquilo que – na acepção real do termo – ela possui de mais primitivo. Isto é, o seu
projeto é efetivamente o da prossecução daquilo que, em rigor, nas
cordas de aço, nunca existiu em lugar nenhum.
Daí que se socorra da alegoria da
“ilha imaginária”, embora trabalhe igualmente no sentido de evocar memórias
específicas. Muitos o fizeram antes, é certo. Falar de alguns deles – como dos
Martha and the Muffins de ‘Echo Beach’ – não serve para explicar a música, mas,
antes, lembrar a atitude. Os Blondie, para dar outro exemplo com berço no punk,
sonorizaram em 1982 ‘Island of Lost Souls’, um falso calipso da estirpe do ‘Island
Girl’, de Elton John, com credibilidade insular no trompete do porto-riquenho Perico
Ortiz e inclinação nativa nuns segundos de gritos e guinchos a imitar araras e
saguis. A canção inspirava-se na adaptação para cinema de “The Island of Dr.
Moreau”, de H.G. Wells, produzida em 1933 pela Paramount e na qual, reagindo a
um clamor ritualista que se presumia de origem autóctone, declarou Charles
Laughton no papel do doutor: “They are restless tonight.” De facto, porque nem
todos podem ser o Eden Ahbez de ‘Nature Boy’, e por aí se escrutinar a condição
humana em circunstâncias laboratoriais, muitas vezes se voltou à metáfora da
ilha para atingir fins moralistas. Parece a cultura popular saber o que no
contexto da biogeografia postulou David Quammen em “The Song of the Dodo”: que
“as ilhas são santuários e terrenos férteis para o único e o anómalo”. Não terá
sido por outra razão que, para dar voz a uma relação inter-racial, conforme
então se dizia, tenha inventado Harry Belafonte a ficcional ilha de Santa Marta em ‘Island
in the Sun’. Ou, muito antes, no ciclo “Noites de Verão”, tenha Berlioz feito
residir o amor eterno numa ‘Île inconnue’. Com a devida vénia a More, e numa
palavra, trata-se de utopia.
Disso, sim, partilha Tó Trips. Escutam-se os temas deste “Guitarra Makaka – Danças a um Deus Desconhecido” – e nem chamámos Steinbeck ao barulho – e em muito disto se pensa e de outro tanto se desconfia. No fundo, mais não se fala do que de uma música que soube fazer do isolamento uma fortaleza e da independência o melhor que tem a dar de si. Levem-na convosco para uma ilha deserta que não se irão arrepender.
Disso, sim, partilha Tó Trips. Escutam-se os temas deste “Guitarra Makaka – Danças a um Deus Desconhecido” – e nem chamámos Steinbeck ao barulho – e em muito disto se pensa e de outro tanto se desconfia. No fundo, mais não se fala do que de uma música que soube fazer do isolamento uma fortaleza e da independência o melhor que tem a dar de si. Levem-na convosco para uma ilha deserta que não se irão arrepender.