“Rua Nascimento Silva 107 / Você ensinando prá Elizete as canções de Canção do Amor Demais / Lembra que tempo feliz / Ai, que saudade/ Ipanema era só felicidade/ Era como se o amor morresse em paz”. in “Carta ao Tom 74”, Vinicius de Moraes
Mergulhado em nostalgia, Vinicius escreveu em 1974 uma carta-canção recordando os ensaios para a gravação deste LP. O poeta não estaria propriamente em busca do tempo perdido, mas começava a negociar lotes com a posteridade. E hoje é óbvio qual a parte da sua produção que melhor lhe sobreviveu. Aliás, na contracapa de Canção do Amor Demais nota-se o seu esforço para legitimar a edição (a editora original, Festa, dedicava-se a LPs de poesia lida) enquanto outra coisa presumivelmente mais séria que não um “mero” conjunto de canções – é que na altura ainda ninguém adivinhava as voltas pelo mundo que “Garota de Ipanema” viria a dar; nem se haviam popularizado as rimas “boca”/“louca” ou “peixinhos”/“beijinhos” de “Chega de Saudade”; e muito menos a aparição de Vinicius gerava instantâneos “saravás”. Mas tudo mudou. E, na prática, todos os que ouviram este disco receberam a confirmação de que a História estava a dar um passo em frente. Porque este foi efectivamente o primeiro LP da bossa nova. Não um “primo afastado”, o “antepassado directo” nem a “origem” da bossa, mas sim – isso mesmo – o registo daquele instante em que pela primeira vez se revelaram concretamente todos os elementos que, no futuro, a definiriam. E não interessa agora transformá-los em “ementa turística”, escalonando ritmo, melodia, timbre, harmonia ou lírica – a bossa nova, todos o sabemos, tornou-se naquele requintadíssimo prato musical gourmet do qual não precisamos conhecer os ingredientes para adivinhar o sabor. E por “culpa” de todos menos da vocalista: Elizete foi cantora demais para se prender a um só género, por mais saboroso que fosse. Ou seja, o que aqui se tornou manifesto foi, primeiro, a “batida do violão” de João Gilberto (presente nos ensaios em casa de Tom e acompanhante em “Chega de Saudade” e “Outra Vez”) e, segundo, a concretização plena da parceria Jobim-Vinicius. O resto é contingência. Inclusivamente a edição dois meses mais tarde do 10” de João em que se actualizava já o papel do cantor num universo musical que Canção do Amor Demais manteve eternamente suspenso entre o “antes” e o “depois”. E esse compasso, pelo menos no que à música popular brasileira diz respeito, é a própria matéria sobre a qual se ergueram os sonhos dos últimos 50 anos.
PS: Notará por certo que o som deste CD se assemelha ao de um LP. E – ao contrário das remasterizações feitas a partir do vinil – nem o quisemos disfarçar. Foi nosso objectivo transformar em virtude uma limitação técnica que, assim, não só ganhará uma função imediata de “cápsula do tempo” como, na prática, permite que se ouça tudo o que realmente acontece em cada tema; de forma aberta e dinâmica, com agudos e graves e mais ou menos ruído de fundo sempre que foi necessário ir à procura de uma nota perdida na corda de uma guitarra, de uma harpa ou no teclar do piano de Tom.
Apresentação de Vinicius de Moraes na contracapa:
Mergulhado em nostalgia, Vinicius escreveu em 1974 uma carta-canção recordando os ensaios para a gravação deste LP. O poeta não estaria propriamente em busca do tempo perdido, mas começava a negociar lotes com a posteridade. E hoje é óbvio qual a parte da sua produção que melhor lhe sobreviveu. Aliás, na contracapa de Canção do Amor Demais nota-se o seu esforço para legitimar a edição (a editora original, Festa, dedicava-se a LPs de poesia lida) enquanto outra coisa presumivelmente mais séria que não um “mero” conjunto de canções – é que na altura ainda ninguém adivinhava as voltas pelo mundo que “Garota de Ipanema” viria a dar; nem se haviam popularizado as rimas “boca”/“louca” ou “peixinhos”/“beijinhos” de “Chega de Saudade”; e muito menos a aparição de Vinicius gerava instantâneos “saravás”. Mas tudo mudou. E, na prática, todos os que ouviram este disco receberam a confirmação de que a História estava a dar um passo em frente. Porque este foi efectivamente o primeiro LP da bossa nova. Não um “primo afastado”, o “antepassado directo” nem a “origem” da bossa, mas sim – isso mesmo – o registo daquele instante em que pela primeira vez se revelaram concretamente todos os elementos que, no futuro, a definiriam. E não interessa agora transformá-los em “ementa turística”, escalonando ritmo, melodia, timbre, harmonia ou lírica – a bossa nova, todos o sabemos, tornou-se naquele requintadíssimo prato musical gourmet do qual não precisamos conhecer os ingredientes para adivinhar o sabor. E por “culpa” de todos menos da vocalista: Elizete foi cantora demais para se prender a um só género, por mais saboroso que fosse. Ou seja, o que aqui se tornou manifesto foi, primeiro, a “batida do violão” de João Gilberto (presente nos ensaios em casa de Tom e acompanhante em “Chega de Saudade” e “Outra Vez”) e, segundo, a concretização plena da parceria Jobim-Vinicius. O resto é contingência. Inclusivamente a edição dois meses mais tarde do 10” de João em que se actualizava já o papel do cantor num universo musical que Canção do Amor Demais manteve eternamente suspenso entre o “antes” e o “depois”. E esse compasso, pelo menos no que à música popular brasileira diz respeito, é a própria matéria sobre a qual se ergueram os sonhos dos últimos 50 anos.
PS: Notará por certo que o som deste CD se assemelha ao de um LP. E – ao contrário das remasterizações feitas a partir do vinil – nem o quisemos disfarçar. Foi nosso objectivo transformar em virtude uma limitação técnica que, assim, não só ganhará uma função imediata de “cápsula do tempo” como, na prática, permite que se ouça tudo o que realmente acontece em cada tema; de forma aberta e dinâmica, com agudos e graves e mais ou menos ruído de fundo sempre que foi necessário ir à procura de uma nota perdida na corda de uma guitarra, de uma harpa ou no teclar do piano de Tom.
Apresentação de Vinicius de Moraes na contracapa:
“Dois anos são passados desde que Antonio Carlos Jobim (Tom, se preferirem) e eu nos associamos para fazer os sambas de minha peça "Orfeu da Conceição", de que restou um grande sucesso popular, "Se Todos Fossem Iguais a Você" e, sobretudo, uma grande amizade. É notório que parceiros se desentendem: e a história da música popular brasileira está cheia dessas brigas de comadres, provocadas geralmente por vaidades e ciumadas, por um não querer o seu nome em baixo do nome do outro, quando não por motivos mais deselegantes e mesquinhos. Mas no nosso caso, não só essa amizade como um profundo afinamento de sensibilidades para a música, que constitui, sem dúvida, nossa distração máxima, tem determinado que fazer sambas e canções seja para nós um ato extraordinariamente livre e gratuito, no sentido da fatalidade. Este LP, que se deve ao ânimo de Irineu Garcia, é a maior prova que podemos dar da sinceridade dessa amizade e dessa parceria. A partir dos sambas de "Orfeu da Conceição", raras têm sido as vêzes em que, de um encontro meu com o maestro, não resulte alguma composição nova, por isso que eu creio ser essa a verdadeira linguagem da nossa relação. Ponha-se Antonio Carlos Jobim ao piano - e é difícil encontrá-lo longe de um - e em breve, de dois ou três acordes, nascerá entre nós um olhar de entendimento; e de seus comentários cifrados ("- Isto são as pedras, poeta!"; "- Os pequenos caracois listados debaixo das folhas sêcas..."; "- As grandes migrações corais..."; "- O outro lado do riacho..."; "- Chegamos à galaxia...") eu terei sabido extrair exatamente o que êle me quer ouvir dizer em minha letra. E nunca houve entre nós quaisquer reservas no sentido de um tirar o outro de um impasse durante o trabalho. É possível mesmo que tudo isso se deva ao fato de que êle crê na poesia da música e eu creio na música da poesia. Porque a verdade é que eu gosto das letras que, eventualmente, Tom também escreve, como "As Praias Desertas"; e a prova de que êle considera as músicas que eu, vez por outra, também faço, está no carinho com que orquestrou a minha "Serenata do Adeus" e o meu "Mêdo de Amar" - todos neste LP. Nem com êste LP queremos provar nada, senão mostrar uma etapa do nosso caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor de fazer sambas e canções, que são brasileiros mas sem nacionalismos exaltados, e dar alimento aos que gostam de cantar, que é coisa que ajuda a viver. A graça e originalidade dos arranjos de Antonio Carlos Jobim não constituem mais novidade, para que eu volte a falar delas aqui. Mas gostaria de chamar a atenção para a crescente simplicidade e organicidade de suas melodias e harmonias, cada vez mais libertas da tendência um quanto mórbida e abstrata que tiveram um dia. O que mostra a inteligência de sua sensibilidade, atenta aos dilemas do seu tempo, e a construtividade do seu espírito, voltado para os valores permanentes na relação humana. Não foi sòmente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar êste LP. É claro que, por ela interpretado, êle nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos; gente que se quer bem para valer; gente que pode, em qualquer circunstância, contar um com o outro; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular; com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para uma noite de serenata.”.
Rio, Abril de 1958, Vinicius de Moraes
Rio, Abril de 1958, Vinicius de Moraes
Alinhamento
1- Chega de Saudade (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
2- Serenata do Adeus (Vinicius de Moraes)
3- As Praias Desertas (António Carlos Jobim)
4- Caminho de Pedra (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
5- Luciana (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
6- Janelas Abertas (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
7- Eu Não Existo Sem Você (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
8- Outra Vez (António Carlos Jobim)
9- Medo de Amar (Vinicius de Moraes)
10- Estrada Branca (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
11- Vida Bela (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
12- Modinha (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
13- Canção do Amor Demais (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
Ficha Técnica 1958
Elizete Cardoso: voz
António Carlos Jobim: arranjos, direcção de orquestra e piano
João Gilberto: violão
Irany Pinto: violino e direcção de orquestra
Nicolino Cópia (Copinha): flauta
Gaúcho e Edmundo Maciel: trombones
Herbert: trompa
Pedro Vidal Ramos: contrabaixo
Juquinha: bateria
João Gilberto, António Carlos Jobim e Walter Santos: coro em "Chega de Saudade"
Secção de cordas não identificada
Reedição 2008
Remasterização: Nelson Canoa em Estúdios Canoa
Texto: João Santos
Design: Travassos
Produção: Mbari
1- Chega de Saudade (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
2- Serenata do Adeus (Vinicius de Moraes)
3- As Praias Desertas (António Carlos Jobim)
4- Caminho de Pedra (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
5- Luciana (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
6- Janelas Abertas (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
7- Eu Não Existo Sem Você (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
8- Outra Vez (António Carlos Jobim)
9- Medo de Amar (Vinicius de Moraes)
10- Estrada Branca (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
11- Vida Bela (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
12- Modinha (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
13- Canção do Amor Demais (António Carlos Jobim/Vinicius de Moraes)
Ficha Técnica 1958
Elizete Cardoso: voz
António Carlos Jobim: arranjos, direcção de orquestra e piano
João Gilberto: violão
Irany Pinto: violino e direcção de orquestra
Nicolino Cópia (Copinha): flauta
Gaúcho e Edmundo Maciel: trombones
Herbert: trompa
Pedro Vidal Ramos: contrabaixo
Juquinha: bateria
João Gilberto, António Carlos Jobim e Walter Santos: coro em "Chega de Saudade"
Secção de cordas não identificada
Reedição 2008
Remasterização: Nelson Canoa em Estúdios Canoa
Texto: João Santos
Design: Travassos
Produção: Mbari