quinta-feira, 28 de abril de 2011

Norberto Lobo "Fala Mansa" (o texto de apresentação)


O Norberto raramente fala sobre os seus concertos a solo. A não ser – quando conta que foi em Brest ouvido por Fred Frith ou em Montreal por Lhasa – que lhe tenham as circunstâncias de determinada apresentação acendido uma chama colaborativa. Porque, por mais que pelo país e mundo fora toque, são os encontros o que mais vividamente recorda (numa lista de parcerias que inclui Naná Vasconcelos, Ernst Reijseger, Rhys Chatham, Stephen Basho-Junghans, Gary Lucas ou Devendra Banhart). É então natural que nos últimos anos se tenha desdobrado em acções colectivas (com Norman e Tigrala editados em 2010) e em projectos de imprevisível consequência. O que de certa forma alimenta uma manifestação mais livre e aberta da sua arte, de que vão surgindo inesperados ecos, como neste vídeo filmado na ilha açoriana de São Miguel.

Neste contexto é difícil amansar-lhe a produção. Até porque está na sua natureza ser assim, travessa, reactiva, em constante excitação e em sistemática fuga. Tem, de facto, e à imagem do seu criador, tendência a, mal nasce, espalhar-se pelo mundo em exploração de infinitas possibilidades. E talvez seja essa a razão por trás de tanta empatia. Michael Jantz, crítico da Foxy Digitalis que nada sabe sobre o Norberto, considerou-a, depois de ouvir “Pata Lenta” (Mbari, 2009), “universalmente identificável como uma poderosa expressão de humanidade”. E é frequente surgir esta ideia de que é de todos embora seja apenas para todos, encontrando-se-lhe lugares em que nunca esteve e identificando-se-lhe memórias que não pode carregar. Vem daí – da simulação do que normalmente se entende por tradicional e comunitário – parte da sua força. Nada, aliás, que ao Norberto desagrade.

Mas porque a relação do Norberto com a música também passa pelos discos, há momentos em que se impõe ultrapassar a vida sem em nada a trair. Conciliar o impulso de diversidade estética com a necessidade de manter coerência e, fundamentalmente, honestidade face aos seus mais básicos instintos criativos. A responsabilidade que esta perspectiva pressupõe explica – face às suas experiências – a sua parca discografia. E é do mesmo modo resultante do respeito que nutre pela obra daquelas figuras – como John Coltrane, Robert Wyatt ou Don Cherry – que amiúde vai citando. Daí que seja importante compreender que um novo álbum seu não é só o retrato de determinado período ou a sintetização de repertório recentemente acumulado: é igualmente um acto de transcendência face à realidade que conhece, um momento de superação artística que tem forçosamente de gerar mais-valias para ganhar razão de ser, o fruto – ou a semente, como se queira ver – que justifica a árvore e, inevitavelmente, a aceitação das suas contradições, desejos, medos e inquietações.

Este seu terceiro disco é a demonstração dessa ascese e um comovente sintoma de maturidade. É o resultado da acção do tempo sobre os princípios de “Mudar de Bina” (Bor Land, 2007) e “Pata Lenta” – para os quais são lançadas pistas e dos quais se retiram ensinamentos – e, em simultâneo, a fixação do instante em que mais claramente encontra um humilde e generoso autor a sua voz, a sua fala mansa, em que mais directamente espelha os seus afectos e preocupações e em que torna ainda mais invisível uma prodigiosa técnica que tem na gestão do silêncio e na transparência com que expõe as suas complexas ideias uma derradeira prova de crescimento.

É, caso fosse preciso, o sinal que pode ficar uma vida inteira a gravar que dificilmente se repetirá. As novidades – e é tudo sempre novo – mais evidentes prender-se-ão com os temas com que abre e fecha, mas ‘Charleston para Jack’ (dedicado a Jack Rose), por exemplo, uma oração de múltiplas vozes e de linhas discursivas em constante sobreposição, revelam como nunca antes uma capacidade de inventar um espaço próprio numa fórmula canónica. Depois, como em ‘Balada para Lhasa’ (Lhasa de Sela, outro fantasma), há canções em que – e jamais soou tão íntimo de quem o ouve – exprime um dom para ternas e melancólicas melodias com um sentimento sem precedentes. Nem alguma vez foi tão sério quanto neste ‘Requiem para as Abelhas’, nem, por outro lado, tanto se assemelhou ao gato que se diverte a perseguir pelo chão o reflexo de um raio de luz como em ‘Aconchego Solar’. Por fim, estreia-se a cantar e tocar piano e teclados em disco na canção titular, uma pérola de quem se vai tornando mais músico do que instrumentista. Por tudo isto, é cada vez mais senhor de si, cada vez mais de nós todos.