“Há dois anos foi editado "Mudar de Bina", o álbum de estreia de Norberto Lobo, e maravilhámo-nos. Havia a dedicatória a Carlos Paredes e havia Paredes lá dentro, mas não reprodução de uma sonoridade, era coisa de alma, algo de intangível.
Não podia ser de outra forma, que Norberto Lobo toca guitarra clássica, não portuguesa. Não podia ser de outra forma porque Norberto Lobo, que passa o dia com uma guitarra às costas, tem a cabeça cheia de música. Música dali e de ontem, música de aqui e de agora. John Fahey e as revoluções do mago da guitarra na Americana. Os sons da cítara de Ravi Shankar e do mandolim de Mandolin U. Shrinivas. E Robert Wyatt e Thelonius Monk e, acima de toda a gente, o multifacetado Jim O'Rourke de quem fala com incontido entusiasmo.
[...]
Eis Norberto Lobo, autor de música que dispensa palavras, guitarrista de uma expressividade tocante. Ei-lo estendendo a mão para nos cumprimentar e eis-nos comentando a peça de roupa que lhe decora o tronco: "Manowar?!" Sim, Norberto acha piada aos ícones mais icónicos do heavy-metal americano, a todos os seus excessos de som e imagem, e conta-nos que um amigo ganhou recentemente a possibilidade de os acompanhar nos bastidores de um concerto espanhol (e ele está entusiasmado porque há espaço para ele).
Conhecemos o humor de Norberto Lobo, do seu gosto por Buster Keaton e por versões do genérico do MacGyver (tocava-as há dois anos), e o humor não é certamente alheio à tal t-shirt. Essa, porém, é mero pormenor. Aquilo a que queremos chegar é uma outra coisa. Isto é o que nos dirá quando a conversa se aproxima do final. Falávamos das suas viagens, dos seus concertos Europa fora, daquilo que ia descobrindo de único em cada um desses países e cidades que vai conhecendo. Diz-nos, então, Norberto: "Cada local tem a sua especificidade, mas ao mesmo tempo vê-se que isto é tudo uma grande aldeia. Existem fadistas japoneses, não é? E bandas como os Extra Golden [formados por americanos e quenianos, simbiose de funk e benga], que são um óptimo exemplo de como já não faz sentido falar do que é ou não é de onde. Não sou a favor da conversa globalização versus qualquer coisa, até porque a antropologia já provou que não existe tal coisa como identidade cultural. Fala-se disso há 150 anos, é um tema ultrapassado e a internet ainda vem suportar mais isso." A culpa, portanto, é toda dele.
Culpa, expliquemo-nos, desta música ter uma limpidez emotiva que nos trespassa, de ser um diálogo de si para si que, generosa, faz questão de nos acolher nesse movimento. "Mudar de Bina", como dissemos, tinha uma versão de Paredes, duas do cancioneiro português, e isso ajudou-nos a focar o olhar em determinada direcção. "Pata Lenta" tem uma versão de "Unravel", de Björk, e títulos como "Ayrton Senna", "Vento em polpa" ou "Zumbido Azedo", mas o olhar não se desvia. Norberto Lobo prossegue viagem e seguimos com ele. "Aquilo [a versão de "Mudar de vida" e do cancioneiro] não eram âncoras", explica. "Pelo contrário, eram desafios, pontos de partida." E ele, saltimbanco da guitarra, músico em viagem, não aprecia regressos: "Quero sentir-me em permanente desafio comigo próprio. Caso contrário, não tem piada." Mais: "Não acho que tenha uma linguagem definida. Sinto que todos os caminhos são ainda possíveis e sinto que sei cada vez menos. Quanto mais me debruço sobre a música, mais vejo o que ainda tenho para fazer."
Todos os contrastes
Norberto Lobo até tinha tudo preparado para "Pata Lenta". As canções, o estúdio, o dia em que o gravaria. Depois, atravessou-se-lhe a realidade: "Funcionou quase como um documentário: quando chegas ao local e começas a gravar, descobres outra coisa." Em "Pata Lenta", Norberto quis recriar uma "experiência de concerto". Não lhe interessava a perfeição, interessava-lhe a pureza e intuição da interpretação. "O disco é uma fotografia à música, naquele dia e naquele momento."
Para compreender a sua vitalidade importa perceber isto que Norberto nos diz: "Na música que quero fazer o erro é tão importante quanto o resto. Eu não edito, incluo a história sem cortes. Não quero fazer um 'take' perfeito que em concerto não vai existir." Mas, como faz questão de assinalar, "isto não é nada de novo": "Tens outros músicos, como por exemplo o [Thelonius] Monk, em que a maneira como toca é tão importante quanto aquilo que toca." Pormenor importante, este. Porque Norberto é alguém que se diz contra a ideia de que "já tudo foi feito" - pelo contrário, "tudo pode ser feito": "cada pessoa tem a sua expressão individual e fará a sua própria fusão" (di-lo e pede desculpa: "fusão é uma expressão horrível").
Porque Norberto se lembra daquilo que, certo dia, afirmou John Fahey quando lhe perguntaram o que era aquilo que fazia quando subia a um palco. Muito simples: "Vou para lá e hipnotizo as pessoas." Com um pormenor adicional: "Acho que o que ele queria também dizer é que se hipnotizava a si mesmo. Que se hipnotizava a si mesmo, logo, hipnotizava os outros."
Então, compreendemos perfeitamente que nos fale do seu fascínio pela ideia de mantra, de "loop": "gosto muito de descobrir uma linha que possa ser navegável durante muito tempo, com diferenças mínimas de bloco para bloco". E reconhecemos que referir "O Caminho Estreito Para o Longínquo Norte", do japonês Matsuo Bashô, e "A Invenção de Morel", do argentino Adolfo Bioy Casares, como importantes para a música que lhe ouvimos ajuda a explicar a misteriosa luminosidade de "Pata Lenta": "O universo do realismo fantástico, na sua expressão mais lata, interessa-me na música, no cinema, na literatura, em qualquer outro lado."
Aqui chegados, reformulemos. Norberto Lobo é um músico curioso que se apaixonou recentemente pela tambura, instrumento indiano, ao ponto de já ter uma banda onde a toca em exclusivo (chamam-se Tigrala e partilha-os com Guilherme Canhão, dos Lobster, e com o percussionista mexicano Ian Carlo Mendoza).
Norberto Lobo editará nos próximos meses o álbum de estreia dos Norman, banda de rocks e jazzs e experimentalismos que tem há dez anos e onde encontramos o irmão Manuel e o baterista João Lobo. Norberto fala-nos da pintura de Michael Biberstein, que ele adora e que ilustra a capa de "Pata Lenta", fala-nos da sua saudável obsessão por xadrez (se o encontrarem num bar, noite alta, a jogar uma partida, não estranhem, é ritual), fala-nos de música e do resto com igual entusiasmo.
E depois, algures entre isso de que nos fala, diz isto assim: "Não sei o que é isso de haver música triste e alegre. A vida não é feita de preto e branco, é feita de cinzentos. Ouço Coltrane e aquilo é de uma pungência... Nem passa por ser triste ou alegre, está acima disso. São as emoções toda numa só canção, como acontece com o [Carlos] Paredes. Isso é o que eu vejo neles." Acto contínuo, acrescenta: "Mas não sei o que as pessoas vêem na minha música."
Pois bem, na música de Norberto Lobo vemos tudo isso. A ele e a nós próprios. Isto aqui e aquilo lá fora. Os contrastes todos”.
Não podia ser de outra forma, que Norberto Lobo toca guitarra clássica, não portuguesa. Não podia ser de outra forma porque Norberto Lobo, que passa o dia com uma guitarra às costas, tem a cabeça cheia de música. Música dali e de ontem, música de aqui e de agora. John Fahey e as revoluções do mago da guitarra na Americana. Os sons da cítara de Ravi Shankar e do mandolim de Mandolin U. Shrinivas. E Robert Wyatt e Thelonius Monk e, acima de toda a gente, o multifacetado Jim O'Rourke de quem fala com incontido entusiasmo.
[...]
Eis Norberto Lobo, autor de música que dispensa palavras, guitarrista de uma expressividade tocante. Ei-lo estendendo a mão para nos cumprimentar e eis-nos comentando a peça de roupa que lhe decora o tronco: "Manowar?!" Sim, Norberto acha piada aos ícones mais icónicos do heavy-metal americano, a todos os seus excessos de som e imagem, e conta-nos que um amigo ganhou recentemente a possibilidade de os acompanhar nos bastidores de um concerto espanhol (e ele está entusiasmado porque há espaço para ele).
Conhecemos o humor de Norberto Lobo, do seu gosto por Buster Keaton e por versões do genérico do MacGyver (tocava-as há dois anos), e o humor não é certamente alheio à tal t-shirt. Essa, porém, é mero pormenor. Aquilo a que queremos chegar é uma outra coisa. Isto é o que nos dirá quando a conversa se aproxima do final. Falávamos das suas viagens, dos seus concertos Europa fora, daquilo que ia descobrindo de único em cada um desses países e cidades que vai conhecendo. Diz-nos, então, Norberto: "Cada local tem a sua especificidade, mas ao mesmo tempo vê-se que isto é tudo uma grande aldeia. Existem fadistas japoneses, não é? E bandas como os Extra Golden [formados por americanos e quenianos, simbiose de funk e benga], que são um óptimo exemplo de como já não faz sentido falar do que é ou não é de onde. Não sou a favor da conversa globalização versus qualquer coisa, até porque a antropologia já provou que não existe tal coisa como identidade cultural. Fala-se disso há 150 anos, é um tema ultrapassado e a internet ainda vem suportar mais isso." A culpa, portanto, é toda dele.
Culpa, expliquemo-nos, desta música ter uma limpidez emotiva que nos trespassa, de ser um diálogo de si para si que, generosa, faz questão de nos acolher nesse movimento. "Mudar de Bina", como dissemos, tinha uma versão de Paredes, duas do cancioneiro português, e isso ajudou-nos a focar o olhar em determinada direcção. "Pata Lenta" tem uma versão de "Unravel", de Björk, e títulos como "Ayrton Senna", "Vento em polpa" ou "Zumbido Azedo", mas o olhar não se desvia. Norberto Lobo prossegue viagem e seguimos com ele. "Aquilo [a versão de "Mudar de vida" e do cancioneiro] não eram âncoras", explica. "Pelo contrário, eram desafios, pontos de partida." E ele, saltimbanco da guitarra, músico em viagem, não aprecia regressos: "Quero sentir-me em permanente desafio comigo próprio. Caso contrário, não tem piada." Mais: "Não acho que tenha uma linguagem definida. Sinto que todos os caminhos são ainda possíveis e sinto que sei cada vez menos. Quanto mais me debruço sobre a música, mais vejo o que ainda tenho para fazer."
Todos os contrastes
Norberto Lobo até tinha tudo preparado para "Pata Lenta". As canções, o estúdio, o dia em que o gravaria. Depois, atravessou-se-lhe a realidade: "Funcionou quase como um documentário: quando chegas ao local e começas a gravar, descobres outra coisa." Em "Pata Lenta", Norberto quis recriar uma "experiência de concerto". Não lhe interessava a perfeição, interessava-lhe a pureza e intuição da interpretação. "O disco é uma fotografia à música, naquele dia e naquele momento."
Para compreender a sua vitalidade importa perceber isto que Norberto nos diz: "Na música que quero fazer o erro é tão importante quanto o resto. Eu não edito, incluo a história sem cortes. Não quero fazer um 'take' perfeito que em concerto não vai existir." Mas, como faz questão de assinalar, "isto não é nada de novo": "Tens outros músicos, como por exemplo o [Thelonius] Monk, em que a maneira como toca é tão importante quanto aquilo que toca." Pormenor importante, este. Porque Norberto é alguém que se diz contra a ideia de que "já tudo foi feito" - pelo contrário, "tudo pode ser feito": "cada pessoa tem a sua expressão individual e fará a sua própria fusão" (di-lo e pede desculpa: "fusão é uma expressão horrível").
Porque Norberto se lembra daquilo que, certo dia, afirmou John Fahey quando lhe perguntaram o que era aquilo que fazia quando subia a um palco. Muito simples: "Vou para lá e hipnotizo as pessoas." Com um pormenor adicional: "Acho que o que ele queria também dizer é que se hipnotizava a si mesmo. Que se hipnotizava a si mesmo, logo, hipnotizava os outros."
Então, compreendemos perfeitamente que nos fale do seu fascínio pela ideia de mantra, de "loop": "gosto muito de descobrir uma linha que possa ser navegável durante muito tempo, com diferenças mínimas de bloco para bloco". E reconhecemos que referir "O Caminho Estreito Para o Longínquo Norte", do japonês Matsuo Bashô, e "A Invenção de Morel", do argentino Adolfo Bioy Casares, como importantes para a música que lhe ouvimos ajuda a explicar a misteriosa luminosidade de "Pata Lenta": "O universo do realismo fantástico, na sua expressão mais lata, interessa-me na música, no cinema, na literatura, em qualquer outro lado."
Aqui chegados, reformulemos. Norberto Lobo é um músico curioso que se apaixonou recentemente pela tambura, instrumento indiano, ao ponto de já ter uma banda onde a toca em exclusivo (chamam-se Tigrala e partilha-os com Guilherme Canhão, dos Lobster, e com o percussionista mexicano Ian Carlo Mendoza).
Norberto Lobo editará nos próximos meses o álbum de estreia dos Norman, banda de rocks e jazzs e experimentalismos que tem há dez anos e onde encontramos o irmão Manuel e o baterista João Lobo. Norberto fala-nos da pintura de Michael Biberstein, que ele adora e que ilustra a capa de "Pata Lenta", fala-nos da sua saudável obsessão por xadrez (se o encontrarem num bar, noite alta, a jogar uma partida, não estranhem, é ritual), fala-nos de música e do resto com igual entusiasmo.
E depois, algures entre isso de que nos fala, diz isto assim: "Não sei o que é isso de haver música triste e alegre. A vida não é feita de preto e branco, é feita de cinzentos. Ouço Coltrane e aquilo é de uma pungência... Nem passa por ser triste ou alegre, está acima disso. São as emoções toda numa só canção, como acontece com o [Carlos] Paredes. Isso é o que eu vejo neles." Acto contínuo, acrescenta: "Mas não sei o que as pessoas vêem na minha música."
Pois bem, na música de Norberto Lobo vemos tudo isso. A ele e a nós próprios. Isto aqui e aquilo lá fora. Os contrastes todos”.