"Talvez tenha havido um tempo em que Tó Trips fechava os olhos e via os Amen Sacristi no Rock Rendez-Vous, via Thurston Moore no Campo Pequeno a apontar a T-shirt que tinha vestida e a dizer "fuckin' Lulu Blind. Right on", via os Lulu no Johnny Guitar, via os Hi-Fi Jô no Sudoeste. Esses seriam os sonhos de 30 anos agarrado a uma guitarra eléctrica, a viver o rock, a descarregar energia, a desenhar cartazes, a chamar o pessoal para os ensaios, a carregar amplificadores e a delirar com "grandes malhas".
Até que um dia, ao assobiar a melodia dos 'Verdes Anos' de Carlos Paredes, descobriu que "se o pitch for mais grave, mais lento, aquilo parece um western". Depois fechou os olhos, viu a ilha de São Tomé e lembrou-se da "Revolta na Bounty". "A ilha perdida que não vem no mapa, o lado tropical, misterioso." Em 2002 foi pela primeira vez sozinho para estúdio e gravou o seu primeiro disco a solo, "Guitars From Nothing", que assinou Dead Combo. Tó Trips passava a sonhar a noite, encontrava o contrabaixista Pedro Gonçalves, tornava-se personagem de banda desenhada, o cangalheiro de cartola numa coboiada no Bairro Alto, e a sua guitarra tentava os blues, Marc Ribot, Morricone, rumbas, jazz... Após mais três capítulos da BD nocturna Dead Combo, Tó Trips acaba de nos revelar, simultaneamente, dois instantâneos das suas viagens musicais: o crepúsculo de "Vi-os Desaparecer na Noite", uma banda sonora em guitarra eléctrica para leituras de "On The Road" de Jack Kerouac, e o entardecer de "Guitarra 66", uma viagem a solo, com guitarra clássica, por paragens como a Route 66, Espanha, Lisboa, Marraquexe, Nova Iorque, a Ilha do Fogo, o México ou Esmoriz.
O primeiro passo de Tó Trips para fora do mundo do rock aconteceu em 1996 quando fez parte da orquestra de 100 guitarras de Rhys Chatham no Coliseu de Lisboa, e ficou durante muito tempo a explorar a afinação em Lá. Depois veio o acaso. "Um dia estava na esplanada da Graça e ouvi um piano. Era o Keith Jarrett, 'The Melody At Night, With You'. Fiquei um grande fã. Comecei a ouvir música africana, Cesária Évora, Chet Baker... O problema é que quando comprava um disco, não conseguia estar sentado a ouvi-lo. Não sou um gajo de técnica. Herdei isso da cena punk. Sou mais pelo som, pelas melodias, pelas harmonias, pelos tempos." Tudo mudou com um disco de Marc Ribot ("Plays Solo Guitar Works of Frantz Casseus"). "Consegui estar no sofá a ouvir, a ver o que ele me dizia. Agora ouço bastante malta da guitarra, tanto flamenca como clássica. Gosto de analisar. Muito graças à minha mulher, que fez um mestrado em ecologia acústica. Com ela vou conhecendo pessoas que têm abordagens da música e do som completamente diferentes, e tudo isso é informação e aprendizagem."
Com as novas músicas vêm, por vezes, novos instrumentos. "Não é que os saiba tocar, é pelo som. Por exemplo, no 'Vi-os Desaparecer...' uso uma pandeireta com um espanta-espíritos contra as cordas da guitarra. Outras vezes encosto caixinhas de música à caixa da guitarra. É um bocado aquele lado fredfrithiano de experimentar coisas. Noutro dia a minha mulher mostrou-me uma coisa fabulosa: no "Elephant" do Gus Van Sant, há um aluno a andar nos corredores da escola e a banda sonora é o som de uma floresta. Resulta, cria uma tensão. Às vezes o som passa-te mais do que as notas."
É um pouco esse conceito ambiental que Tó explora em "Vi-os Desaparecer...", a gravação de 28 minutos de uma experiência que desde 2007 repete com o poeta Tiago Gomes. Trips toca enquanto Tiago lê excertos traduzidos de "On The Road". Para esta gravação convidaram Paulo Gouveia (bateria), Francesco Valente (contrabaixo), José Lencastre (saxofone), Luís Vicente (trompete) e Mafalda Nascimento (violoncelo), o que torna as composições como que uma versão rock experimental de Dead Combo. São as várias Américas de quem sempre viveu o rock, mas tem uma ideia de jazz, blues e de fronteira mexicana e consegue localizá-la nos trastes da guitarra.
Gravado em Fevereiro, oito meses depois de "Guitarra 66", retoma dois temas deste, 'Ponzo' e 'Pinacoolata' (que muda de nome para 'Montana Slim' e abranda o tempo). "Guitarra 66" tem apenas mais 10 minutos, mas é uma obra completamente diferente, acabada. Aqui não é a imaginação a deambular atrás de Kerouac, mas uma geografia íntima que se revela com uma sensibilidade comovente. Há duas coisas que definem este disco. Uma é factual, a ida para Esmoriz com a mulher e a guitarra acústica, a outra disse-a na entrevista: "Gosto que a música me faça viajar, que me passe imagens, que tenha tempo." Estão lá as viagens em família nas fotografias do Cairo, de Nova Iorque, de S. Tomé e de Marrocos, está lá a localização das músicas que o habitam, e, gravado na face do CD, o seu percurso transformado numa imaginário mapa-múndi. Mas a chave está na naturalidade com que a música se desenvolve, numa técnica que não se impõe. Logo, não é Tó Trips versão 'acústico MTV'. Também não é como se pela primeira vez a persona Tó Trips deixasse de fazer sentido. É mais simples: "Quando um gajo acredita em qualquer coisa, consegue chegar lá. Eu mudei muito, mas tenho coisas que vêm de trás. Se fazes uma música ela deve ter a ver com o teu dia-a-dia. Que não destoe. Que tocar guitarra seja como tomar o pequeno-almoço. Isto é o que toco em casa. Toco todos os dias e gravo todos os dias. Tenho mais coisas, mas completamente diferentes. Noise, minimal, ambiente."
À naturalidade da música juntou-se o tema das viagens. "Desde miúdo gosto de olhar para a linha do horizonte. Às vezes, quando estou mal, penso que há sempre um sítio para onde ir. Um bocado de esperança. E os sítios têm a ver com isso. Marrocos, tão perto de nós, tem aquelas grandes paisagens, aquele lado exótico, tem uma mãe no chat com o filho que está em França e o contador de histórias que vem do deserto com as serpentes. Apanhei aqui um bocado disso tudo."
E, para compor a singularidade do disco, uma comovente partilha com Raquel Castro. "É dedicado à minha mulher. É uma coisa nobre. Sou um gajo romântico."